
Uma certa inquietação circula no ar, que não se resume às guerras, quentes ou frias, nem aos descaminhos da política, ou às notícias de violências e atrocidades, das quais cada vez mais tememos ser vítimas. É uma inquietude oriunda da fugacidade dos vínculos sociais e afetivos, assim como da dissolução de modelos tradicionais para o agir e o pensar, que nos davam uma sensação de segurança, ainda que ilusória. A crise global de liderança, aliada à desconfiança nas instituições democráticas, faz parte desse amplo contexto psicológico e cultural, que muitos vêm chamando de “modernidade líquida”, um conceito criado pelo filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) antes mesmo do advento das redes sociais.
Tratando-se de um processo por definição fluido, fica difícil determinar quando, exatamente, a modernidade líquida teria começado. Entretanto, se restringirmos a questão à esfera da cultura lusófona, arrisco sugerir que tal processo foi desencadeado a partir da extinção do trema, levada a cabo com a reforma ortográfica de 2009.
A partir daquele momento, literalmente perdeu-se a tranqüilidade, pois, sem o trema, nada impede que, num futuro talvez não distante, trancuilidade (transcrição fonética da palavra) não acabe virando trankilidade. Nesse caso, a pronúncia ficaria próxima à do espanhol, deixando de ser a do português tal como o conhecemos.
Veja-se o caso indigesto de linguiça (a velha lingüiça). Ante a ausência do trema, a pronúncia talvez venha um dia a se igualar à do verbo enguiçar, que, por sua vez, poderia mudar para engüiçar. Ouviríamos coisas como: “a máquina de fazer linguiça engüiçou”. Ou ainda: “o meu cachorro-qüente é com linguiça”.
Na mesma linha, a pronúncia do “gue” em aguentar poderia copiar a do verbo guerrear, o qual, por sua vez, mudaria para güerrear. Então, ouviríamos alguém por perto exclamar: “não aguento mais essa güerra”, o que nos deixaria mais próximos do italiano.
Exemplo dos mais emblemáticos é o da antiga ambigüidade, pois, sem o trema, aí é que a coisa ficou ambígua de vez. Ambiguidade poderia vir a ser pronunciada como o verbo guiar, cuja pronúncia, por seu turno, poderia mudar para güiar. Aí, ouviríamos coisas como: “ambiguidade me mata, prefiro ser güiado com total segurança”. Novamente, penderíamos para o italiano.
Com isso não quero dizer que a abolição do trema seja algo intrinsicamente ruim. Se por um lado representa a recusa deliberada da bússola ortográfica, um entregar-se às ondas do mar da oralidade, por outro talvez possa significar confiança na natureza do fenômeno linguístico, uma aposta na capacidade de adaptação e renovação do idioma.
Seja como for, o fim do trema poderia muito bem representar o marco de nossa entrada na era da incerteza. Pelo menos nisso levaríamos vantagem sobre outros povos. Saberíamos, exatamente, quando e como começou a nossa modernidade líquida. (A pronúncia seria líqüida?)
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Bert Jr. é gaúcho de Porto Alegre, formado em História (UFRGS) e Diplomacia (IRBr). Como diplomata, tem vivido em diferentes países. É autor de dois livros de contos, três de poesia, e do romance Antes do fim do riso. Lançou, também, Sem pé com cabeça – crônicas do século 21, coletânea de escritos humorísticos publicados na Revista Conexão Literatura.
Site: www.bertjr.com.br