Na crônica “Coisas do português” (Sem pé com cabeça – crônicas do século 21, ed. Labrador), contrasto o uso do idioma dos dois lados do Atlântico, ressaltando o cômico – para nós, brasileiros – de algumas palavras e expressões utilizadas do lado de lá. Um dos casos mencionados é o das abreviações “mota” e “fota”. Se a língua obedecesse à lógica, deduziríamos que se originam das palavras motacicleta e fotagrafia cortadas ao meio, numa operação em que se resguardam as duas primeiras sílabas e se eliminam as duas últimas. Entretanto, ao pesquisar no dicionário…surpresa! Tais palavras – motacicleta e fotagrafia – não têm registro nem lá, nem cá.
E agora, ó pá, de onde saíram as formas “mota” e “fota”? Se não consistem no recorte bissilábico das palavras originais, o que as explica?
A única explicação que encontro (ainda estou em busca de outras possíveis) aponta para a regra geral de que as palavras do gênero masculino terminam em o, e as do gênero feminino em a. Portanto, já que motocicleta e fotografia pertencem ao gênero feminino, suas abreviações, para manterem-se fiéis ao gênero, supostamente deveriam terminar com a desinência nominal “a”. Daí, mota e fota.
Consequentemente, a ouvidos lusitanos devem soar estranhas e incongruentes expressões como “a moto”, ou “a foto”, em que o artigo indica o gênero feminino, enquanto a desinência corresponde ao masculino.
Tenha-se presente, no entanto, que para tudo há exceção, e as regras gerais costumam estar cheias delas. Vejamos…
Se a regra geral fosse lei pétrea, a palavra tribo seria masculina, porque termina em o; faríamos, então, parte de algum tribo. Se fosse feminina, não haveria escapatória senão pertencer a uma triba.
A diferença entre o rádio, aparelho eletrônico, e a rádio, emissora que atua numa frequência específica, deixaria de existir, já que seria inadmissível dizer “a rádio”. Em vez de “ouvi hoje cedo na rádio”, diríamos “ouvi hoje cedo numa estação de determinada frequência”.
Nossa “querida avó” passaria a atender por “querida avá”.
Notas musicais como o fá e o lá virariam a fá, ou o fó, e a lá, ou o ló.
O tratamento correto para freira não poderia ser “sóror”, mas “sorora”.
E quanto à libido? Diríamos “a minha libida anda a mil”, ou “o meu libido tá mais por baixo que vogal com acento circunflexo”.
E as abreviações de exames médicos? Para encurtar palavras como mamografia e ecografia, teríamos de dizer coisas como “me pediram uma mama”, ou “acabo de fazer uma eca”.
Enfim, quem souber de outra explicação para o enxerto da desinência “a” nos dissílabos moto e foto, pronuncie-se com urgência. Do jeito que a coisa está, alguém poderia enxergar no caso uma forma de preconceito gramatical: o de intolerância ao feminino com o.
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Bert Jr. é gaúcho de Porto Alegre, formado em História (UFRGS) e Diplomacia (IRBr). Como diplomata, tem vivido em diferentes países. É autor de dois livros de contos, três de poesia, e do romance Antes do fim do riso. Lançou, também, Sem pé com cabeça – crônicas do século 21, coletânea de escritos humorísticos publicados na Revista Conexão Literatura.
Site: www.bertjr.com.br