Volta e meia a nossa cidadania linguística sofre atentados absolutamente gratuitos, movidos pela sanha de inventar regras despropositadas para a língua que ouvimos e falamos desde crianças.
Uma dessas pretensas lições é a de repudiar a assim chamada negação dupla, apregoando que o uso combinado de “não” com “nenhum(a)” constitui pecado gramatical. Essa regra existe no inglês, em que não se pode dizer you don’t know nothing, mas sim you know nothing, ou you don’t know anything. Talvez por fantasiar um paralelismo, ou parentesco, entre os dois idiomas, talvez por entender que a língua deva dobrar-se à lógica pura, como se vivêssemos confrontados com uma interminável prova de Filosofia, tem gente partidária da ideia de que as negações em português sejam feitas substituindo-se “nenhum” por “qualquer”. O delírio anglofílico fica evidente quando se pensa que as línguas mais próximas da nossa – o espanhol e o italiano – são ambas usuárias da negação dupla, o que nunca impediu de serem lógicos os textos de Ortega y Gasset ou Umberto Eco.
O curioso é que a regra proposta pelos cultores do “portunglês” tem efeito contrário ao pretendido. Confira:
a) Não fiz nenhum barulho. – Significa que você permaneceu silenciosa(o).
Não fiz qualquer barulho. – Nossa, você fez um barulhão!
b) Ela não me deu nenhuma indicação. – Que pena, você continuou desprovido(a) de orientação.
Ela não me deu qualquer indicação. – Sorte sua, recebeu uma informação melhor do que o esperado.
c) Não dei nenhuma resposta. – Você permaneceu calada(o).
Não dei qualquer resposta. – Sua resposta foi espetacular, genial.
d) Não irei a nenhum lugar. – Não sairei de onde estou.
Não irei a qualquer lugar – Parabéns, você irá fazer um belo passeio.
Deve-se ter presente que o uso de “qualquer” nas negações é aceito pelas gramáticas e tem trânsito entre a maioria dos escritores, portanto não está errado; porém, introduz uma ambiguidade de sentido da qual “nenhum”, por sua vez, está isento. Embora ambos sejam pronomes indefinidos, em “nenhum” prevalece a noção de ausência; em “qualquer”, a de indeterminação.
Se a dupla negação devesse mesmo ser banida da nossa língua, então como ficariam as negativas com “nada”?
e) Não fiz nada, juro! – Você se absteve de agir.
Não fiz qualquer coisa, juro! – Você fez algo extraordinário.
Ou então: Não fiz algo, juro! – Provoca interrogação: o que foi aquilo que você não fez?
f) Não é nada, não! – O que aconteceu não teve importância.
Não é qualquer coisa, não! – O que aconteceu foi da máxima importância, prepare-se para as consequências.
Não é algo, não! – Frase sem sentido: se não é algo, o que poderia ser?
Como exemplo final, escolha abaixo a opção que lhe soa preferível:

– Não quero mais nada, obrigado.

– Não quero mais qualquer coisa, obrigado.

– Não quero mais algo, obrigado.
Não sei quanto a você, mas prefiro não dar margem a nenhuma dúvida. A menos, é claro, que a dúvida não seja uma qualquer.

SAIBA COMO DIVULGAR O SEU LIVRO, EVENTO OU LANÇAMENTO AQUI NA REVISTA CONEXÃO LITERATURA: CLIQUE AQUI

Compartilhe!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *