Advogado de formação, Frederico Pernambucano de Mello é referência em estudos sobre o cangaço e Guerreiros do Sol é considerado um clássico nessa temática. O livro tem 544 páginas, ricamente ilustrado e ancorado numa extensa pesquisa realizada em jornais, na poesia sertaneja, em documentação histórica e em depoimentos escritos e orais. Segundo ele, a nova edição traz poucos acréscimos. “O que predomina é a purificação dos dados, dever interminável de quem escreve”, declara o escritor.
No livro, ele traça um panorama do homem sertanejo, descreve a violência instalada no país, analisa as formas de cangaço e ressalta a teoria do escudo ético, argumento da vingança usado por cangaceiros para exercer a bandidagem. “Com a franqueza e a ausência de inveja com que procuro me pautar, digo que, sem sombra de dúvida, a teoria do escudo ético, de Frederico Pernambucano, foi a única que, até o dia de hoje, me pareceu convincente: foi a única que explicou a mim próprio os sentimentos contraditórios de admiração e repulsa que sinto diante dos cangaceiros”, disse, sobre essa teoria, o escritor Ariano Suassuna.
Lampião e Maria Bonita em Sergipe. Cena do filme de Benjamin Abrahão. Cortesia da Aba-Film, CE |
O mais famoso dos cangaceiros, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião (1898-1938), justificava sua entrada no cangaço como vingança pela morte do pai e prometia retaliações contra José Saturnino e José Lucena de Albuquerque Maranhão, a quem responsabilizava pela vida que levava. “Curiosamente, a propósitos tão firmados e melhor alardeados não se seguiam ações de mesma intensidade. Pode-se mesmo conjecturar que Lampião jamais tentou sinceramente destruir os seus dois grandes inimigos”, relata o pesquisador em uma das passagens da obra.
Frederico Pernambucano analisa as figuras do cangaceiro, jagunço, pistoleiro, capanga, cabra e valentão. “O cangaceiro mostra não ter sido fenômeno homogêneo, divergindo segundo a motivação que levava o indivíduo a tomar armas, bem assim pela conduta adotada”, destaca. Assim, ele identifica o cangaço como meio de vida (Lampião e Antônio Silvino são os principais representantes), o cangaço como instrumento de vingança (Jesuíno Brilhante e Sinhô Pereira são os grandes exemplos) e o cangaço como refúgio (Ângelo Roque é o mais expressivo).
Elogiado por pesquisadores nacionais e estrangeiros, como o sociólogo Gilberto Freyre e Billy Jaynes Chandler (escritor norte-americano com livros lançados sobre o cangaço brasileiro), Guerreiros do Sol é o resultado de uma vida dedicada à pesquisa. “Seguindo Gilberto Freyre, com quem trabalhei por quinze anos na Fundação Joaquim Nabuco, do Recife, vali-me da mais aberta pluralidade de fontes, das mais carrancudas, cartório etc, às mais insuspeitadas, sem desprezar a poesia dos cantadores e os folhetos ditos de cordel, como os anúncios de jornal, sempre uma fonte purificando a outra”, diz Frederico Pernambucano.
Num texto publicado na 5ª edição (Selo A Girafa/SP, 2013), Evaldo Cabral de Mello, tido como um dos maiores historiadores do Brasil, define Guerreiros do Sol como “o mais abrangente e profundo estudo do cangaceirismo, tema sobre o qual muito já se escreveu, mas que só este livro aborda desde uma variedade de ângulos que vão do seu condicionamento socioeconômico pelo ciclo do gado à análise do arcaísmo cultural em que seus comportamentos deitam raízes, e ao acobertamento ético que habilita o cangaceiro a justificar o uso sistemático da violência perante si mesmo e perante a sociedade.”
Entrevista com Frederico Pernambucano de Mello
Pergunta – Queria que o senhor definisse em poucas linhas o que é fazer-se cangaceiro.
Frederico Pernambucano – Fazer-se cangaceiro era protagonizar uma tradição brasileira de insurgência coletiva, rural, armada e metarracial, essa última característica significando que se podia ascender na hierarquia dos bandos de cangaceiros independentemente do tipo racial a que se pertencesse. Lampião era caboclo; Corisco, louro dos olhos claros; Luiz Pedro, Candeeiro e Elétrico, sararás; Zé Baiano, negro; Zé Sereno, negroide; Cobra Verde, moçárabe; Gato e Peitica, índios quase puros; Maria Bonita, alva; Dadá, mulata; Inacinha, índia.
Pergunta – O que o senhor destaca como a grande contribuição do livro para as pessoas interessadas neste período da história?
Frederico Pernambucano – O livro salienta a existência de dois Nordestes, o da agricultura de exportação, à frente a cana-de-açúcar, e o da pecuária, o ciclo do gado e do couro. Dois mundos, duas sociedades, dois homens, duas formas de motivação e exteriorização da violência, presente em ambos. Salienta, individualiza e conceitua os protagonistas dessa violência: o cabra, o capanga, o “matador de pé de pau” ou pistoleiro, o jagunço e o cangaceiro. Há ainda a salientar no livro uma teoria proposta e hoje adotada em geral, a do “escudo ético”. Em essência, a narrativa adotada pelo fora da lei logo que vai ficando famoso, destinada a lhe justificar a conduta. Afinal, coragem, bravura e audácia produziam simpatia no universo rural, contudo, para a imortalização pela poesia de gesta era necessária uma justificativa moral compreensível.
Pergunta – O livro lançado em 1985 é o resultado de um extenso trabalho de pesquisa em documentação histórica, jornais, depoimentos orais e escritos e em poesia sertaneja. Quanto tempo o senhor levou para fazer esse levantamento?
Frederico Pernambucano – Há um tempo de vivência e de convivência que cobre a vida inteira do observador, notadamente os verdes anos, tempo em que pude estar com muitos remanescentes do ciclo histórico do cangaço, em andanças intermináveis pelo Sertão. Dos remanescentes, quem mais me ajudou foi Miguel Feitosa Lima, o cangaceiro Medalha, que andou com Lampião de 1921 a 1925, de quem findei me tornando “afilhado de fogueira”, instituição sertaneja hoje em desuso. E há o tempo sistemático de pesquisa, desenvolvido, no meu caso, sobre o cabedal de vivências mencionadas acima. Nesse segundo domínio, levei cerca de dez anos, gastando saliva em entrevistas e comendo poeira em arquivos.
Serviço
O que: Lançamento do livro Guerreiros do Sol: Violência e banditismo no Nordeste do Brasil, em evento aberto ao público
Quando: 23 de março
Local: Academia Pernambucana de Letras (Avenida Rui Barbosa, 1596, Graças, Recife)
Hora: 19h
Preço: R$ 80 (impresso) e R$ 32 (e-book)