Tiago Magalhães Ribeiro nasceu e vive em Porto Alegre (RS). Foi vocalista, guitarrista, baterista e compositor de algumas bandas de rock underground. Trabalha na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É graduado em Filosofia pela UFRGS, mestre e doutor em Educação pela Unisinos. Publicou os livros Do “você não pode” ao “você não quer”: uma história da prevenção às drogas na educação (Prismas/Appris, 2013) e Governo ético-político de usuários de maconha (Prismas, 2016), de Ciências Humanas, e o volume de crônicas Gremismo crônico: glória e fracasso de um torcedor de futebol (autopublicação para Kindle, 2019)Frio (2023) é seu primeiro romance.

ENTREVISTA:

Conexão Literatura: Poderia contar para os nossos leitores como foi o seu início no meio literário?

Tiago Magalhães Ribeiro: A literatura é algo que sempre, ou quase sempre, fez parte da minha vida. Desde criança, os livros foram uma presença na casa da minha família, e o incentivo à leitura foi uma marca da educação que recebi. Escrever um romance foi um projeto que acalentei durante muito tempo e do qual me afastei unicamente durante os anos de formação acadêmica, ao longo dos quais me vi atarefado demais com leitura e escrita científica. Concluído o doutorado, a ideia voltou a rondar minha cabeça, embora eu raramente conseguisse a harmonização entre criatividade e disciplina, que me parece necessária para a escrita. 

O impulso decisivo acabou acontecendo durante a pandemia de Covid-19, e isso por diversas razões. Primeiro, por conta do isolamento social. Eu nunca tinha passado tanto tempo em casa em minha vida adulta, o que me permitiu ler literatura com uma intensidade muito acima da que eu mantivera ao longo dos últimos anos. E, também, de forma mais subjetiva, devido ao clima emocional angustiante que aquela situação de isolamento, apreensão e sofrimento provocou. As notícias terríveis, o medo de ficar doente ou perder entes queridos. Sendo bastante específico, lembro-me de um dia estar lendo o romance “2666”, do escritor chileno Roberto Bolaño, e perceber, de repente, durante a leitura, que eu estava profundamente emocionado com o que lia. 

Resolvi investigar por que isso estava acontecendo e o que, exatamente, me impactava. Então, comecei a identificar características da escrita de Bolaño, escolhas estilísticas que ele fez ao narrar a história que se desenrola no romance e como essas escolhas, principalmente questões formais, por si só funcionam para conduzir as emoções do leitor. Logo em seguida, pensei: gosto disso. Quero fazer isso também. O escritor, o artista em geral, é sobretudo um manipulador de emoções. Desde então passei a utilizar todo o tempo livre que consigo para escrever.

Mas não sei até que ponto posso dizer que estou no meio literário. Publiquei por minha conta um romance, algumas pessoas têm lido e gostado, mas me sinto um outsider, não cultivo muitas relações no meio e, pra ser sincero, nem entendo muito bem como funciona o campo literário no Brasil. Eu diria que, tanto pelo estilo que escrevo quanto pela posição que ocupo nesse meio, sou um escritor underground, com todas as delícias e desgraças que isso implica em um país em que a maior parte da população, por diversas razões, não tem o hábito da leitura.

Conexão Literatura: Você é autor do livro “Frio”. Poderia comentar?

Tiago Magalhães Ribeiro: Frio é a história de um homem hamletiano, ou seja, um homem inseguro e despreparado para o desafio que se coloca diante de si. Um homem em busca do pai, no sentido literal e simbólico que essa busca pode representar. Forçado a se reconectar com seu passado, suas origens, ele se vê confrontado pelo absurdo da vida, ou seja, pelo desencaixe entre a realidade e as nossas idealizações acerca da realidade. Esse homem um tanto intelectualizado e travado, bloqueado na vida, contra a sua vontade, que é de se esconder, se neurotizar, se fechar, acaba sendo arrastado de volta ao cenário de sua infância, uma cidade pequena e sombria. Ele quer saber o que realmente aconteceu com o pai, mas se vê perturbado por sonhos e lembranças que o afundam em uma espécie de torpor paralisante. Com o passar do tempo, a inação em que se coloca acaba por enredá-lo em uma espiral de mistério e barbárie envolvendo o desaparecimento do pai, a figura suspeita e dominadora do tio, uma antiga namorada por quem talvez ainda tenha sentimentos, um ex-colega de escola envolvido em nebulosas tramas políticas e um velho professor, seu mentor no passado, hoje um sujeito recluso e sem qualquer esperança na vida e na humanidade. Entorpecido pelos acontecimentos e sem condições emocionais de lidar com todas essas figuras e sentimentos de um passado nunca elaborado adequadamente, esse homem se perde em uma névoa entre o sonho e a realidade. Cercado pelo mato e pelo barro que dominam a paisagem do lugar onde está, começa a sentir um frio estranho, diferente, sobrenatural. Enfim, é a história de um homem que entra em confronto com os fantasmas do passado enquanto agoniza em uma luta para entender quem ele mesmo é e o que realmente deseja. Alguns temas clássicos da reflexão existencial humana entram em questão aí, como a morte, o amor, o desespero e a busca de sentido para a vida.

Conexão Literatura: Como é o seu processo de criação? Quais são as suas inspirações?

Tiago Magalhães Ribeiro: Geralmente tenho minhas melhores ideias quando estou escutando música ou vendo filmes. Principalmente a música. Uma atmosfera ou textura sonora, um fragmento de letra, esse tipo de coisa me desperta algo, uma emoção, e a partir daí eu racionalizo, tento elaborar essa emoção e transcrevê-la, se é que se pode dizer dessa forma, narrativamente. A história vai brotando assim, de combinações de ideias que surgem provocadas pelo contato com outras formas de arte. Depois, claro, vou organizando tudo isso, sistematizando, ordenando, preenchendo ou não as lacunas que identifico entre as ideias. Aí começa o trabalho mais disciplinado, mas a fagulha inicial é essa, uma emoção espontânea. Então, devo dizer que talvez mais do que autores ou obras literárias, o que principalmente me inspira a escrever literatura é a música e o cinema. E no momento da escrita também: escrevi boa parte do romance Frio escutando continuamente uma playlist que elaborei e que depois divulguei no meu Instagram (@tiago_2666) para quem quiser ler o livro escutando essas mesmas músicas que ouvi ao escrevê-lo. Em Frio, as atmosferas são muito importantes, tanto as atmosferas dos ambientes nos quais se passa a história, quanto a atmosfera emocional do Vila, o personagem central. Para me estimular e inspirar na construção dessas atmosferas, escutei muito Joy Division, The Cure, Interpol, Human Tetris, Sharon van Etten, Él Mató a un Policía Motorizado, Lebanon Hanover, Beach House, entre outras bandas e artistas que criam atmosferas musicais densas, sombrias e noturnas. Quando não estava escutando essa playlist, ouvia os Noturnos de Chopin na interpretação de Arthur Rubinstein. Isso tudo contribuiu para que eu conseguisse mergulhar na atmosfera que queria criar.

No que se refere ao cinema, acho que a obra de David Lynch talvez seja a principal inspiração que busquei na tentativa de constituir um estilo para a minha escrita, que acabou se tornando, como já comentaram algumas pessoas que leram o livro, bastante cinematográfica. “Veludo Azul”, “Twin Peaks”, “A Estrada Perdida” e “Cidade dos Sonhos” forneceram elementos e imagens que ressoam na minha mente há muitos anos e que retomei na escrita do romance. Mas, claro, também há inspirações literárias. Além do já mencionado Roberto Bolaño (com “2666”, mas também com “O Terceiro Reich”, um maravilhoso e menos conhecido romance do escritor chileno), Cormac McCarthy (principalmente com “Meridiano de Sangue”), Ignacio Padilla (“Amphitryon”) e Fernanda Melchor (“Temporada de Furacões”) foram autores e obras que me marcaram profundamente e que certamente inspiram escolhas estéticas que faço no meu processo de escrita.

Conexão Literatura: Poderia destacar um trecho do livro especialmente para os nossos leitores? 

Tiago Magalhães Ribeiro: Sim. Transcrevo abaixo um trecho do capítulo 21 do romance Frio:

¨Às vezes, nesses passeios, Vila para durante algum tempo próximo a cada um dos lugares que compõem o itinerário e fica a observá-los. Aguarda que algo aconteça. Mas nunca acontece nada. Quando já surgem os primeiros sinais do amanhecer ele se posta na saída da Cidadezinha, de frente para o caminho de chão batido que conduz à autoestrada, sem que possa enxergar nada para além dos cinco metros de distância que batem de frente com o muro de neblina. Fica ali, parado de pé, encolhido, as mãos nos bolsos, olhando para o nada. Às vezes pensa que o nada deve ser como uma espécie de nevoeiro muito denso e incapacitante, um nevoeiro do meio do qual pode saltar algo terrível, ou então algo ir se delineando aos poucos, vir surgindo uma forma estranha, vagamente humana, que se aproxima ainda indefinível e chega muito perto até que se possa perceber que se trata de algo monstruoso, uma criatura que se sabe irreal, mas que se vê ali, diante dos olhos, em toda a materialidade do irreal. Como um Minotauro, ou qualquer desses monstros, meio homens, meio bichos, que nunca se sabe como poderão agir, se como humanos ou como feras. E é nisso que Vila pensa em algumas dessas noites quase indiscerníveis umas das outras, exausto de pé diante da estrada engolida pela neblina, imaginando também que poderia aparecer um automóvel em total descontrole, os faróis acesos surgindo de repente e já tarde demais, como o velho Corcel do seu pai avançando louco o sinal vermelho, já destruído antes do impacto, querendo matar e morrer, e então abalroado pelo outro veículo, aquele que Vila, sentado no banco de trás, se lembra de ter visto por uma fração de segundo antes que tudo se espatifasse e escurecesse e fosse apenas gritos e horror, aquele que veio e levou sua mãe e destruiu seu pai e ele mesmo, Vila, só lembra num flash duvidoso da memória, um lusco fusco incerto no qual o carro vem, rápido, insano, em toda sua brutalidade e Vila gira a cabeça e antes que possa gritar e tudo se apagar, vê de relance o rosto do motorista e ele é um homem comum, banal, igual a qualquer outro que dirige um veículo em qualquer rua ou estrada desse imenso país triste, com a única e inesquecível diferença de que tem a cabeça de um touro. Ou seria o seu pai que, no último instante, no auge da loucura, um segundo antes do choque, tinha a cabeça de um touro? E é nesse ponto que tudo se esvai em vertigem, em apagamento, em febre. E Vila retorna para casa molhado, doente, com dores por todo o corpo, principalmente na cabeça, e se deita naquele sofá já farto dele, deformado por ele, molhado de seus suores e desiste, apenas deita e desiste, certo de que é a última vez, a última noite, de que tudo está finalmente para acabar e então afinal adormece e aguarda o decesso até que uma força da natureza o empurra novamente, na próxima madrugada, a repetir tudo de novo até o ponto fatídico em que fica na estrada, estático, assombrado, consumido em ansiedade, aguardando o surgimento pavoroso do Minotauro que parece vir buscá-lo mas que sempre passa por ele, o atravessa e desaparece de novo na neblina. E quando Vila se volta para vê-lo, claro, já não está mais lá e não há estrada, nem faróis, nem Minotauro nenhum. Só a neblina e mais nada¨.

No meu Instagram tem um vídeo em que leio essa passagem. Está aqui: https://www.instagram.com/p/CyRj568uaBf/

Conexão Literatura: Como o leitor interessado deve proceder para adquirir o livro?

Tiago Magalhães Ribeiro: Por enquanto o livro existe apenas como e-book disponível para Kindle e pode ser adquirido no site da Amazon. O link direto para encontrá-lo é:

Conexão Literatura: Quais dicas daria para os autores em início de carreira?

Tiago Magalhães Ribeiro: Acho que a única coisa que posso dizer é que devemos escrever o que gostamos de ler, sem tentar agradar os outros, as modas, o mercado, as agendas políticas do momento, etc. Não porque desvalorize essas coisas, todas têm sua relevância e seus contextos na vida, mas porque acredito que fazer isso é a única forma de escrevermos com autenticidade. Se sabemos do que gostamos quando vamos ler, se já descobrimos, já encontramos isso, já refletimos e ponderamos sobre as características estéticas do que nos agrada, do que nos comove na literatura, e se lemos muitas coisas com essas características, temos muito mais condições de encontrar nossa forma própria de escrever. Acho que é importante tentar cruzar a literatura com o desejo, com essa força interior, primitiva, talvez, que nos conecta sincera e profundamente com a vida. Se a escrita de algum modo encontra o desejo, ela produz algo autêntico, algo sincero, de verdade. Aí, claro, depois disso, isso encontrado, assegurado, temos todo um conjunto de elementos, também fundamentais na escrita, que podemos de certa forma aprender. A técnica, o manejo seguro e criativo da linguagem. Pra isso acho importantes as oficinas literárias, as mentorias, os cursos, as leituras críticas, enfim, todas essas ferramentas que o mercado desenvolve e apresenta e que nos ajudam muito a melhorar nossa escrita. Recomendo a todos que estão começando a escrever e que tiverem a oportunidade. Mas, na minha opinião, antes e mais profundamente do que tudo isso, nossa tarefa é encontrar nossa singularidade, compreender como a escrita se conecta com o nosso desejo e como tudo isso vai se misturando: desejo, escrita, vida. Não é fácil, mas é uma jornada que vale muito mais a pena empreender do que simplesmente tentar copiar ou seguir o que está vendendo mais nas livrarias.

Conexão Literatura: Existem novos projetos em pauta?

Tiago Magalhães Ribeiro: Sim. Estou escrevendo um novo romance. Está numa fase bem inicial ainda. Nesse novo projeto acho que estou aprofundando algo, algum tipo de investigação que já está presente no Frio, que é uma espécie de imersão no lado sombrio do ser humano, o lado que todos temos mas do qual não gostamos de falar, não queremos tomar consciência, pois ele nos apresenta como algo diferente do que gostamos de pensar que somos, do que pretendemos mostrar aos outros. Mas é algo que, inescapavelmente, está lá, e muitas vezes está dirigindo as coisas (às vezes até política ou socialmente falando, ocupando posições de grande poder). Esse aspecto sombrio da existência humana me interessa, pois ele é extremamente ativo, poderoso e atuante em nossas vidas, ainda que para tornar suportável a existência tenhamos que fantasiar, elaborar narrativas que nos ajudam a nos proteger do horror da verdade. Então esse novo projeto de certa forma leva adiante questões que estão no romance Frio e que me interessam, me fascinam e me perturbam: o absurdo, a ausência de sentido, o aspecto sombrio dos seres humanos. Há uma beleza na forma como lutamos e nos debatemos entre o que gostaríamos que fôssemos e aquilo que as nossas experiências na vida vão nos indicando que de fato somos. Há um horror na percepção do descompasso que existe entre essas duas coisas. Esplendor e escuridão. É o que somos.

Perguntas rápidas:

Um livro: O Terceiro Reich

Um ator ou atriz: Harry Dean Stanton

Um filme: Força Maior

Um hobby: Grêmio Football Portoalegrense

Um dia especial: Hoje

Conexão Literatura: Deseja encerrar com mais algum comentário?

Tiago Magalhães Ribeiro: Queria apenas agradecer a oportunidade que essa entrevista me deu de refletir sobre a literatura, minha forma de vê-la, meus processos criativos, minhas concepções estéticas, minha jornada. E convidar os leitores que sobreviveram até aqui a conhecerem o romance Frio e meus outros livros.

Compartilhe!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *