Crédito da foto: Moizes Vasconcellos

Transformar a dor pessoal em literatura não é tarefa fácil, remexer em antigas feridas é traumático, embora catártico. Resgatar memórias ocultas é trazer à tona esqueletos esquecidos no fundo do passado, relatar o embate com a morte é um ato de coragem e de amor à vida. Superar doença terminal, apesar dos prognósticos médicos contrários, é uma prova de que o câncer – mesmo os mais letais – já não é uma sentença de morte. Esses são os gatilhos do romance autobiográfico “Confissões de um cadáver adiado” (Editora Urutau – 315 págs.), do escritor e jornalista gaúcho Luiz Carlos Freitas, autor de dez obras já publicadas. Confira a entrevista exclusiva:

1 – RCL: Como surgiu a ideia de escrever sobre tema tão doído, complexo, considerado tabu, ainda mais quando o autor é narrador e personagem central, subvertendo narrativas óbvias?

LCF: Eu não escolhi escrever essa obra. Ela me escolheu. Durante dez anos a história ficou maturando na mente, sem que eu me desse conta, até que em 2022 amadureceu e exigiu vir à luz. Antes, por pressão íntima, precisei visitar Baião, pequeno vilarejo do Norte de Portugal, onde nasceram meus avós paternos, imigrantes que se instalaram em Pelotas, no Rio Grande do Sul, por volta de 1927. Após conhecer o local das minhas raízes, retornei e escrevi o livro em nove meses, de um só fôlego. Estava pronto no meu inconsciente e jorrou sem dificuldades.

2 – RCL: Fácil, assim? Geralmente, resgatar memórias e romancear histórias traumáticas pessoais é complexo e exige tremendo esforço físico, mental e espiritual. Foi o seu caso?

LCF: Admito, apesar de a história estar praticamente pronta, foi penoso escrevê-la, ainda que prazeroso. Pode parecer paradoxal, mas sem sofrimento não há consistência e verdade em uma obra literária. Assim como não há um bom livro sem pitadas de otimismo, de esperança, de alegria. Há de se equilibrar essas vertentes, mesmo quando o tema central é sombrio. No “Confissões”, eu mexi com assuntos arraigados no inconsciente, reabri feridas ainda não cicatrizadas, espantei fantasmas que em mim habitavam, relatei dores e sofrimentos pessoais e familiares, fiz um acerto de contas com o passado. Algumas recordações me fizeram sofrer muito, houve ocasiões em que cheguei o limite das minhas forças e da capacidade de suportar a revelação de fatos e verdades escondidos havia décadas no subconsciente.

3 – RCL: Você pode antecipar algo da essência da obra? Sem spoiler, é evidente.

LCF: Os “ganchos” do livro estavam alojados na mente desde sempre: a morte do meu pai aos 43 anos, em decorrência da mesma doença que me acometeu passados 38 anos; a fuga do meu avô paterno para Portugal em 1954, e o retorno para o Brasil em 1972; a infância pobre e sofrida; um pai machista e infeliz; uma mãe subserviente e frustrada, viúva aos 39 anos, com quatro filhos para criar. Uma criança tímida e sensível; um adolescente complexado e solitário, apaixonado por literatura, cercado por todos os lados; um adulto que conseguiu romper as algemas da pobreza intelectual, financeira e espiritual; um homem que aos 55 anos descobre ter três tumores malignos, no pâncreas, inclusive. O diagnóstico de morte iminente, a luta contra uma infecção generalizada; o temor de recidiva; as sequelas físicas e mentais. Todos os ingredientes para um bom livro estavam ali. O problema era conseguir descrevê-los com isenção e distância, a fim de tornar a história verossímil e verdadeira. Creio que consegui. A duras penas!

4 – RCL: Você nasceu em uma família pobre e iletrada, segundo consta. Como se deu a paixão pela literatura e, depois, a necessidade de escrever?

LCF: Eu comecei a trabalhar aos nove anos de idade. Primeiro fui vendedor frutas em uma esquina, depois cobrador de ônibus. Desde cedo vivenciei nas ruas a dura realidade da vida e desenvolvi a natureza de observador nato. Em paralelo, nasci com o dom da escrita, creio firmemente nisso. Tanto, que minha primeira professora identificou certo talento para as letras e passou a me incentivar. E, aí, há um mistério até hoje indecifrável: meu pai era semianalfabeto, mas tinha o hábito de comprar livros em leilões. E nunca me incentivou a ler. Eu que, muito cedo, descobri as maravilhas e mistérios da leitura. Fiquei apaixonado, fascinado, viciado! Adolescente, ler já não me bastava, e comecei a escrever. Nunca mais parei. Continuo lendo e escrevendo. Na mesma medida.

5 – RCL: Quais são suas principais referências literárias e qual o primeiro livro que o marcou?

LCF: Alfabetize-me praticamente sozinho, antes da idade escolar. Lembro-me de Graciliano Ramos. Angústia. Esse foi o primeiro livro que determinou meu fazer literário. Mas meus mestres, se posso assim dizer, são Dostoiévski; Victor Hugo; Emile Zola; Kafka; Camus; Machado de Assis…

6 –RCF: Como você vê o atual cenário literário brasileiro? Há futuro, em que pese os baixos índices de leitores no país?

LCF: Estou otimista. Não desconheço a realidade, sei que há muito por fazer para despertar e conquistar novos leitores, mas creio que a tendência é positiva. Apesar da hegemonia das redes sociais, apesar do mal causado pelo uso exagerado da internet, eu creio que o Brasil ainda será um país de leitores. Desde que haja políticas públicas sérias de incentivo à cadeia do livro, desde que a Academia e os poderes constituídos se engajem na luta para difundir a leitura, sob a premissa de que “a literatura, salva, liberta e forma cidadãos livres, pensantes, e, portanto, críticos e com livre-arbítrio.”

7 – RCF: Qual sua opinião sobre a produção literária nacional, em relação à competição com obras estrangeiras?

LCF: Entendo que o “colonialismo” cultural que fomos submetidos é coisa do passado. Estamos aprendendo, arduamente, a valorizar os autores nacionais, finalmente começamos a solidificar identidade literária própria e marcante. Porém, é preciso ficar atentos e fortes. Hoje se produz muita literatura, mas de qualidade discutível. Acho imprudente e um desserviço ao universo literário brasileiro, importar livros de atributos duvidosos ou reproduzi-los, deixando de lado nossa essência e valores culturais, por exemplo. É preciso que não se pense apenas no lucro, há de se ter compromisso social, comprometimento com o futuro, dar um basta ao que é imposto pelas artimanhas do marketing milionário.

8 – RCF – Cite um fato marcante na sua carreira até agora?

LCF: Sou um humilde e desconhecido aprendiz de feiticeiro das letras, não me vêm à mente fatos marcantes – talvez porque não os tenha. Exceto um recente, em que fui alvo do ódio, do extremismo, da ignorância: antes do primeiro turno das eleições municipais do ano passado, postei nas minhas redes sociais um texto abrindo meu voto em favor do candidato de esquerda. Deu ruim! Deu polêmica. Muitos me apoiaram, alguns me criticaram. Normal. Não fosse por uma postagem de uma mulher, de extrema direita, afirmando que havia “queimado na churrasqueira” todos os meus livros que adquirira ao longo dos anos. Isso me deixou bastante chateado. Até pensei em responder, mas desisti. É insensatez bater de frente com um muro feito de estultice e cólera. Vida que segue!

9 – RCF: Novos projetos em andamento?

LCF: Sempre. Estou escrevendo um novo livro, em abril lanço o romance psicológico Tons de vermelho-sangue, em junho, dia 21, às 14h30, ocorre o lançamento nacional do Confissões de um cadáver adiado, na Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, juntamente com outros autores da Editora Urutau, que terá estande próprio no evento. Talvez também participe da FLIP… Por aí!

Luiz Carlos Freitas é gaúcho, romancista, jornalista, cronista e contista. Foi repórter, editor de Cultura, editor-chefe e colunista político do centenário jornal Diário Popular. Filho de família humilde, Freitas começou a trabalhar aos dez anos e exerceu diversas profissões, até chegar ao jornalismo. Autor independente, já publicou dez obras de ficção, além de centenas de crônicas e contos em jornais impressos, sites e em redes sociais. Leitor voraz desde a infância, ele lapidou a escrita lendo obras clássicas da literatura. Com uma vida dedicada à literatura, suas obras retratam o cotidiano do povo humilde e são repletas de personagens que vivem à margem, com ênfase na redenção dos humilhados e oprimidos. Freitas defende a ideia de que o escritor pode ser um agente de mudança e colaborar para uma sociedade mais fraterna, solidária, humanista e socialmente justa.

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