Carlos Eduardo Monte – Foto divulgação

Sobre o autor.

Carlos Eduardo Monte é nascido em Jaú, interior paulista, em 1975. Formado em Letras, mestre e doutor em Estudos de Literários pela Unesp/Araraquara, estreou no romance em 2021, com A inesperada visita da Santa Morte ao jovem Silviano das Flores, e como contista já participou de várias antologias e concursos, com premiações e menção honrosa para: “A morte de Maurélio Salgado”, “O imitador de Stanislau Zen” e “Uma palavra acerca do bigode de Salvador Vargas”, entre outros. Em 2015, foi finalista do Prêmio SESC de Literatura.

O que o motivou a escrever o Homem Extraordinário?

Eu gosto dessa questão, justamente, por não acreditar em uma resposta definitiva.

Na verdade, não deveria haver uma resposta, mas acaba que, ante a necessidade do diálogo, criamos uma hipótese; de quando em quando, com sorte, morremos abraçados a ela.

Atualmente, minha hipótese é de que escrevi Homem Extraordinário porque sofro de uma severa tendência à desobediência! Fomos sistematicamente treinados à submissão, e a hipóstase aí colocada deu-nos a condição de pessoas adestradas, atuando dentro de uma imaginada margem de autonomia e liberdade. Há, sim, um buraco de fechadura por onde podemos todos olhar e ver que as coisas deveriam ser bem diferentes; esse buraco, para mim, é a literatura, e a arte, por assim dizer. E digo isso, pois, no final das contas, talvez eu ainda seja mesmo um sonhador, e isso defina a questão (se, ao envelhecer, me tornarei cínico, o tempo dirá).

Veja, meu personagem é uma espécie de novo-Casmurro, violentamente atormentado em ter que dividir o mundo com outras pessoas, e mais ainda violentamente atormentado pelo fato de que estas pessoas imponham injustiça e desigualdade umas às outras, fazendo do exercício do poder um imperativo intransponível.

Como não recorrer às fissuras estruturais (nosso buraco de fechadura)?

E por qual buraco de fechadura o protagonista de seu livro olha?

Trata-se de um professor aposentado com a impressão de que, tantos anos ministrando aulas de sociologia, havia feito sua parte e que, então, para o restante de seus dias, bastaria apenas tolerar o inexpugnável mundo em desacordo.

Ledo engano, pois não é o que acontece; a amarga lição é a de que a vida não nos dá trégua, e mesmo no alto de seus setenta e dois anos, quando o corpo já se encontra em franca derrocada e as certezas estão praticamente todas experienciadas, ele é forçado à ação.

Assombrosamente ciente de sua condição, Antônio Pilhares, nosso protagonista, é desobediente; não se contenta em olhar pelo buraco da fechadura, pretendendo que a porta toda seja colocada abaixo.

Ele é desobediente, eu sou desobediente.

Antônio pilhares, portanto, é uma espécie de alter ego?

Ele anda bem cansado, irritado e impaciente; e é exatamente assim que eu também tenho acordado todos os dias.

Mas vamos colocar de outra forma.

Penso que toda literatura, em alguma medida, revele especificidades próprias da interação humana (acredito que até mesmo o simples ato de escrever e encerrar o texto em uma gaveta até que, eventualmente ou magicamente, tudo amadureça, trata-se de um gesto de interatividade).

Estamos em uma época, contudo, em que muitas destas interações estão sendo reorganizadas, algumas delas propositadamente apagadas, é o caso pontual do ensino e da aprendizagem, uma das questões presentes no livro, cuja meta utilitarista (a performance como valor inafastável pela Alta Modernidade), superpõe-se a qualquer outro valor ou interesse, deixando claro que, além de ter sido rebaixada à categoria de produto, o que se espera da educação é que ela esteja a serviço exclusivo de uma política econômica débil e altamente complexa, cujo máximo valor é mensurado pela capacidade de produção e competitividade; recrutar um mercado eterno e em exponencial, enfim, está na pauta principal das grandes corporações.

Antônio Pilhares, assim como eu e, certamente, também você, não suporta mais a maneira como a coisa toda se organizou. Sem poder agir de outra forma, de um lado, ele se resigna; de outro, escreve e teoriza mais e mais, à espera de que alguém (nossa possível pessoa extraordinária) possa realizar mais do que ele mesmo tenha conseguido.

Eis a síntese, acho que nos identificamos com isso.

É uma questão mais de identificação, portanto, e não de um alter ego.

Sendo assim, a educação é um dos temas do livro?

É o que estou dizendo.

Se pensarmos bem, a questão da educação passa a ser de melhor e pior gestão e, em termos práticos, temos que princípios basilares, como o da identidade e o da formação espiritual (obviamente, não no sentido religioso do termo), nem sequer estejam sendo cogitados nas salas de aulas, eis o resultado do apagamento destas relações.

Ou seja, tudo se torna uma questão de eficácia, e o ser humano (em estado individual) não nasceu para ser eficaz, convenhamos. Somos complexos e incongruentes, e só mesmo através de abruptas organizações é que nos parecemos lineares e capazes; ou seja, isso foi o que fizeram e estão fazendo conosco através dos tempos, o discurso já foi vendido e comprado. No fim, somos eficazes quando podemos ser substituídos e aniquilados subjetivamente, é quando normalmente adoecemos e somos colocados de lado.

Devo continuar sendo honesto, ou apenas seguimos tomando café!? (risos). Antônio Pilhares, nosso protagonista, atravessou décadas pautando sua vida entre a esfera pública e a privada, tentando disseminar entre seus alunos a possibilidade do conhecimento como forma de engrandecimento ético-moral; contudo, quando o mundo se pronuncia a uma queda vertiginosa dessa orientação, esse professor se dá conta de que fez pouco, muito pouco, e isso precisa mudar, eis uma linha de condução deste livro.

Se me pareço com esse homem, assombrado e atarantado pela forma como gradativamente somos reduzidos a nada e, mesmo assim, insistimos em rolar a pedra novamente para o alto da montanha, ainda que tomados pela certeza de que fracassaremos, sim, temos aí uma espécie de espelhamento.

Eu mesmo não conseguiria agir de forma diversa.

Qual sua sugestão?

Há um cenário claro de violência social em seu livro, é aí que se instaura a narrativa?

Em dada medida, este livro é também um ensaio.

Há nele o “E se…” próprio dos ensaios literários; com a inclusão dessa lexia, veja o que fez Saramago, por exemplo, em “História do cerco de Lisboa” ou mesmo no “Ensaio sobre a cegueira”, para ficarmos no mesmo autor, tudo se torna possível. A bem dizer, toda literatura parte de um “E se…”, e não necessariamente do “Era uma vez…”. Acho que precisamos pensar melhor nisso!

Quando o grande “E se…” tem o condão de animalizar nossa existência, pondo toda uma cultura e seus valores em xeque, a distopia surge como cenário do romance; é assim que, enfim, saltamos do ensaio à distopia.

Você leu bem, sem dúvida Homem Extraordinário tem como pano de fundo uma crise de proporções nacionais, o epíteto que deveríamos dar à coisa pouco importa (prefiro me furtar a um slogan); tudo agora é pautado pela violência, talvez possamos falar disso, mas não é algo que me agrade.

Escrever sobre isso, ou seja, de uma possibilidade que se agiganta e verdadeiramente me assusta, fez-me sentir muito mal, guiando-me a um início de depressão. Levou um bom tempo para que eu pudesse me recuperar minimamente.

Somos essencialmente violentos, é uma pena!

Distópico, então! Qual o grande “E se…” em Homem Extraordinário?

Os grandes abusadores de nosso país nunca serão punidos.

Podemos inverter a questão proposta no livro: e se tivéssemos, como deveríamos ter feito, punido os responsáveis pela tenebrosa ditadura militar que assolou o país décadas atrás? Se os torturadores tivessem sido presos e punidos, ou, no mínimo, perdido seus voluptuosos salários e regalias, creio que não viveríamos atormentados pelo fantasma do autoritarismo.

Felizmente, nossos militares beiram ao anedótico, são cheios de uma autoestima invejável, isso é verdade, no entanto, religiosamente tendentes ao tipo ridículo e repolhudo, que só sobrevive graças a uma ideia já fortemente diluída contra a qual não temos coragem de nos levantar.

Se o Brasil tivesse cuidado de punir os agentes responsáveis pela ditadura militar, como fizeram outros países sul-americanos, talvez não vivêssemos com a sombra dessa barbárie à porta, prestes a entrar; estão salvaguardados por suas patentes, uniformes e pela inexorável certeza de que jamais serão punidos. Ou seja, demos a eles um alvará sem prazo determinado.

Todos conhecemos a história, e o desastre pelo qual passamos. Contudo, mesmo diante de tanto horror, o país tratou de se calar, e agora, quando a extrema direita faz ressoar sua ideologia absurda, alavancada por pseudopolíticos mal-intencionados, os ânimos destes criminosos renascem; estamos vivendo uma pausa, mas duvido que as coisas ainda não possam se acirrar e, caso um desastre assim aconteça, só então é que nos daremos conta do preço a ser pago em decorrência da impunidade; questão básica de causa e consequência.

Eis o seu “E se…”, mas às avessas.

Só pude escrever o Homem Extraordinário porque não fizemos a lição de casa; uma pena, pois gostaria muito de que a tivéssemos feito com dignidade, e que o “E se” do livro fosse uma possibilidade muito mais remota.

Reavaliando a questão de entrada, qual, portanto, o real cenário do livro: distopia ou realidade iminente?

Sua escrita se pauta sempre pela questão política?

Longe disso!

Embora esteja parecendo o contrário, tanto em Homem Extraordinário, como em A inesperada visita da Santa Morte ao jovem Silviano das Flores (eu sei, esse nome parece uma locomotiva desenfreada, rs), a questão é muito mais subjetiva, ambos se voltam para a angústia do ser humano vivendo em um mundo caído e fragmentado; meus personagens são pessoas pessimistas e sem esperança. Poderia dizer que, a exemplo de muitos, vivo apavorado com estas questões, o que me leva à expressão existencial da escrita, e aqui entendo que respondo sua pergunta, não pretendo uma escrita combativa, muito menos panfletária (isso me dá até pavor) e, sendo do tipo que recorre a medicamentos, ansiolíticos e terapias, insistindo a ser convencido pelo o que se desdobra da herança filosófica do século passado (entre Nietzsche, Heidegger e algo da escola de Frankfurt), recorro à arte (essa coisa que não serve para nada. Não concordo, por isso ironizo) para tentar me salvar de alguma maneira, mesmo intuindo que certamente jamais haverá salvação alguma. De tal forma, sou apenas mais um cético que procura na literatura um sentido (já sabendo que não haverá sentido algum), o que tento exercitar, como já repeti, quando tomado por violenta paixão ou profundo desespero. É daí, nesse lugarzinho que inventamos, de onde retiro um norte mais imediato para a vida, onde me fecho e vou, por exemplo, fugindo de fantasmas como os da velhice e o da morte, até que, em um dia de muito sol, consiga me abrir novamente, dar uma volta e, certamente, encerrar-me mais tarde novamente em meu claustro.

O livro Homem Extraordinário pode ser (mas não necessariamente) lido através desse leitmotiv, como uma obra política, no entanto, mais essencialmente, trata de como a experiência de um professor universitário, em suas interações humanas, foi sendo modulada através das décadas, diluindo o compromisso inicial que a função espelhava e exigia, para se ver transformado no quase oposto do que pretendia ser (quiçá, seu próprio algoz).

Percebe, a questão é muito mais sobre a existência inautêntica já há tanto anunciada.

Sobre política inautêntica não tenho competência alguma para falar.

Sua obra comporta outras chaves de leitura?

Sim, muitas, todo livro encerra isso.

Esquivando-se dos erros crassos, quase toda leitura é possível.

Gosto de como Umberto Eco resolve a questão das chaves de leitura, sobretudo, aquelas insinuadas pelo próprio escritor. Segundo ele, tão logo terminado o livro, a fim de preservá-lo, o autor deveria morrer (e isso não se relaciona com as teorias acerca da morte do autor próprias do pós-estruturalismo); de preferência, insiste Eco, um livro nem mesmo deveria ter um nome, sob o risco de engessar ou, certamente, direcionar a leitura. Mas não seria preciso exacerbar tanto para se fazer entender; enfim, não gostaria de ser morto por ter lançado um livro (rs). Prefiro acreditar que as chaves de leitura sejam de fato múltiplas, de forma que, excluídos os excessos, quase toda interpretação se torna válida; a coisa toda passa a ser um direito e também uma obrigação do leitor.

Já dissemos que o Homem Extraordinário põe em questão a impunidade de que gozaram os militares responsáveis pela ditadura dos 60 e 70 no Brasil, é verdade, eis um dos temas do livro (se me interessa ou não essa leitura, não vem ao caso). Um livro sobre a velhice, e a sensação subjacente de incompletude, seria uma forma de olhar para Homem Extraordinário? Sem dúvida que sim, e acho preferível. De outra forma, não seria equivocado apostar na temática dos relacionamentos, pois o livro é todo formado desse dialogismo: pai-filha; professor-aluno; analista-analisando; médicos-paciente; amigos-inimigos, tudo está lá.

Alguma chave, por assim dizer, mais inédita?

Se estivéssemos falando sobre a questão da intenção do autor (isso me faz lembrar da famosa cena criada por Woody Allen em Annie Hall), eu diria que há um fenômeno social de particular intenção trabalhado no livro, trata-se do que, na ausência de melhor palavra, vem sendo chamado de contaminação.

Penso que alguns governos totalitários, não só, mas sobretudo estes, têm se fortalecido diante de cenários em que a expressão da impossibilidade de controle começa a se tornar uma tônica; a reação a isso acaba resultando em algo interessantíssimo: tentativas ignóbeis de lidar com situações cuja gênese não se consegue compreender. Aliás, entendo que a essência dos extremismos se apoie, em grande parte, nessa necessidade de reação ao inexplicável fenômeno que a interatividade se tornou.

Eis a questão, as novas formas de interação nos deram um fenômeno extremamente complexo, constituído pela multiplicidade de graus e de elementos em relação, e que, dado o nível de descentralização, impossíveis de contenção. Daí que antigas estratégias, como o legalismo por exemplo, acabam sendo subvertidas à tentativa de coibição do exercício desse fenômeno. “Buracos de minhoca da interatividade”, é como consigo explicar o encurtamento de caminho que o clustering, o swarmin e o cloning somados nos têm dado.

Você segura ou impede o estrondo apenas por um determinado tempo, sucumbindo diante da fluidez que se torna a espinha dorsal dessa combinação. Sim, os mecanismos existem, mas são facilmente contornados. A melhor forma de descrever o que está em ocorrência como pano de fundo em Homem Extraordinário é pensar dessa maneira; acho que uma espécie de atualização da teoria do mundo pequeno (sendo ele verdadeiramente gigante, rs), estou pensando em Karinthy. Tais fenômenos, cuja gênese se mostra sempre dificílima de ser explicada, está cada vez mais em evidência; e os mecanismos de conhecimento, padecendo de saudosismo, nem consegue mantê-los sob a mira do microscópio por tempo suficiente, pois já se transformam em outra coisa.

Diante de inesperadas manifestações, de manifestações que, aparentemente, “fugiram ao controle”, alguns atores lançaram-se ao abismo na tentativa de tentar se apropriar desse fenômeno social. Como definir o que aconteceu em 11 de março de 2004, na Espanha? Ou no 30 de junho de 2013, no Egito? Ou na Tunísia, em Bucareste em Kiev, enfim, citando de passagem, entre dezenas de ocorrências, até mesmo nós tivemos o nosso pequeno ensaio de contaminação, em 2013.

A pergunta que acaba sendo exercitada por meu protagonista, no final das contas, é a seguinte: “É mesmo preciso controlar isso tudo!?” Forçar essa barreira pode ser catastrófico; uma reação mal calculada.

Não estou me vangloriando, mas ainda não li a descrição desse fenômeno em qualquer outro livro; certamente há, mas não conheço (vi algo parecido no Coringa, de Todd Phillips. Lembrando que o filme é de 2019, enquanto a primeira versão de Homem Extraordinário, finalista do Prêmio SESC em 2015, é de 2014). O fato de que tais movimentos e manifestações sociais aconteçam quase que praticamente espontaneamente, alavancadas através de redes sociais e utilização de um liame invisível, ou seja, sem necessariamente que grandes atores estejam presentes, certamente põe em perspectiva tudo o que sabemos sobre liderança.

Talvez seja essa a nova subversão, um produto fugindo ao padrão mercadológico.

Enfim, falamos de algumas chaves de leitura, cada um que se abrace a que melhor puder lhe abrir (ou fechar). Já que falamos de Eco, voltemos a ele: “todo livro é uma máquina de escrever preguiçosa”, tem lá algumas diretrizes fulcrais, o resto é com o leitor e seu repertório ou background.

Um autor não deveria ser perturbado com esse tipo de questão, a mesma que se espere uma resposta catastrófica, como acabo de fazer.

Diria que sua literatura tem um diapasão catártico, portanto?

Pode-se dizer que sim.

Penso que, em última instância, seja o que todo artista busca, à exceção dos utilitários. A literatura que vem sendo produzida no Brasil, e que surge como reflexo de uma exigência mercadológica, normalmente falando à sombra de uma sugestão de nova episteme (não desconheço isso), esqueceu-se, em parte, da busca pela qualidade literária do texto, isso é algo que não parece fazer sentido para mim. Aquela busca mítica pela literariedade (herdada do Formalismo Russo), ou mesmo o esforço de reconhecer uma função poética do texto literário soam de fato como artefatos ultrapassados, e tudo bem que seja assim, enfim, importantes escolas surgiram para difundir outros elementos de uma obra literária, mas que não demarcaram o apagamento da qualidade do texto (gosto do que o pós-estruturalismo fez nesse sentido).

Não ignoro, contudo, que existam alguns escritores que não abriram mão de se debruçar durante boa parte de sua vida na tentativa de alcançar algo valioso; agradecimentos a eles. De outro lado, como competir com um mercado selvagem e pouco seletivo, em que editoras em profusão publicam sem aparente distinção, bastando que se possa pagar por seu livro (mais uma vez o fator econômico como valor exclusivo), e exigindo que se produza mais e mais. Tal facilidade, longe de ser atacada por mim, é um traço da geografia humana que não me cabe avaliar (e por isso mesmo agora falo como um simples leitor), só poderia resultar em casos de baixa qualidade.

Não há nada de bom sendo produzido no Brasil?

Seria absurdo dizer que não, sempre há algo sendo gestado.

Não sou de apontar nomes, mas tenho me animado pouco com o que vem sendo anunciado como boa literatura; acho que podemos dizer que a maioria seja apenas literatura ou quase literatura. Atribuo isso a uma ânsia por publicações apressadas, obras pouco amadurecidas; a advertência de que não se está fazendo uma postagem em redes sociais deveria ser um mandamento de todo escritor (rs).

Felizmente, acredito que bons textos, como historicamente sói, acabam vencendo pela qualidade. Você sabe disso quando, por exemplo, lê um livro como Torto Arado; ou seja, mesmo que se esforçasse muito, temos ali uma narrativa que não poderia passar despercebida. Em algum momento alguém cavaria a terra, e a recolheria, apresentando esse tesouro ao mundo. Coisas assim normalmente sobrevivem por conta da capacidade extraordinária de seus autores, devido ao respeito empregado no exercício de sua atividade. Alguns gênios sempre estão falando acima da média, contudo, em termos pátrios, não consigo destacar alguém nessa posição que tenha alcançado o mercado, ninguém que pudesse sentar à mesa com Machado, Graciliano, Drummond, Clarice ou Guimarães.

Enfim, escrever dá muito trabalho! Se você escreveu algo que tenha parecido demasiado fácil, certamente, não deve ter ficado muito bom. Nesse ponto, concordo com Jorge Luís Borges, até mesmo para se escrever um simples bilhete é preciso muito esforço. Existem autores bissextos, com textos bissextos, algo que não se consolida. Acho que Itamar, por exemplo, conseguiu uma bela façanha, e que provavelmente ainda se firmará como um autor grandioso; é possível que entre nesse rol.

Esse atual cenário não é resultado do que de fato tem sido importante às novas gerações?

Você está querendo me colocar em péssimos lençóis.

Há de tudo um pouco, como disse.

Alguns autores são midiáticos (e isso não deve ser um problema), gozam de certa fama, existe um apelo à construção do autor-personagem, e esse apoio tornou-se a nova forma de ser percebido; há também autores falando a partir de uma espécie de “autoridade da experiência”, o que se costuma ler como “lugar de fala”, não ignoro a importância disso, contudo, preferiria que esse não fosse o único fator a ser considerado para análise da qualidade do livro; penso que a biografia do autor deva ser algo extremamente acessório, até mesmo desconsiderada, o que deve realmente importar, para mim, é o livro e tão somente seu conteúdo; aqui sou antiquado, um verdadeiro formalista russo (rs).

Fazer o quê, sou anacrônico por natureza.

Mas seu livro também está conectado a uma nova realidade.

Meu livro só está em partes conectado à realidade. Seu conteúdo ganha força em novos acontecimentos, no entanto, em relação à forma, não há novidade alguma. Tenho uma dezena de outros livros em andamento, ali, talvez, entre estes, exista uma tentativa de novidade; contudo, não se trata de algo intencional ou imperativo.

Vamos lá: “ou se vive, ou se escreve”, famosa frase de Pirandello, um gênio absoluto, e que pode ser lida muito além da simples ideia de que ou se faz isso ou se faz aquilo, ele mesmo não acreditava na fixidez das coisas. Penso que há uma realidade do escritor quando está escrevendo, essa é sua vida em presença, e ainda bem que ele precise se desconectar, ainda que momentaneamente do mundo, para poder falar sobre ele (parece paradoxal, mas não é), daí é que escrever se pareça com uma esquizofrenia, um ato de solidão em que se cria personagens em profusão, de forma a não nos sentirmos tão solitários.

Essa é a figura estranha do escritor, de outra forma, nos pareceríamos com aquele construtor de maquetes que, adstrito a um porão de Buenos Aires, perdeu o contato com a realidade, gestando uma obra completamente diversa daquela que gostaria de representar. A questão da representação em literatura, você bem sabe, é antiquíssima, Sócrates, como dizia um querido professor de literatura, tomou um susto com a questão, coube a Aristóteles teorizar e naturalizar a coisa, e depois disso uma fileira interminável de críticos e literatos se debruçaram sobre a questão; hoje, o que tomamos como realismo literário serve mais para que se estabeleça uma categorização de tudo aquilo que em sua narração discursiva destoa das leis naturais, como é o caso da escrita de terror ou da literatura fantástica, por exemplo.

Há distinção entre elas?

Entre literatura fantástica e de terror? Certamente que sim, na verdade, um abismo se estabelece entre ambas. Apesar de todas as críticas, a obra de Todorov, Introdução à literatura fantástica, pode dar uma boa orientação sobre a questão, já que praticamente todos os críticos partem dele para a elaboração de suas teorias; estruturalista em excesso? Talvez, afirmo que não seria importante se não tivesse se tornado um grande referencial crítico e teórico.

No entanto, isso é assunto para outra oportunidade.

Não me lembro mais do que estávamos falando.

Se seu livro tem alguma conexão com a realidade?

Posso responder partindo de uma leitura que acabo de fazer.

Falo do livro Violeta, de Isabel Allende. A ditadura empreendida no Chile, quando de fato vem para o centro da narrativa, já na parte final da narrativa, soa quase como uma descrição de um período que, bem ou mal, atualmente, todos nós já conhecemos.

Em meu livro, contudo, acredito ter alcançado um grau um pouco mais profundo da inflexão de um regime totalitário em ocorrência, deixando que tudo se conclua a partir da maior ou menos percepção do leitor, posto que a crise em ocorrência está batendo à porta de nosso protagonista.

Claro, não estou julgando as escolhas narrativas de Allende, genial tal como só ela pode ser, só estou estabelecendo um diferencial, já que o pano de fundo acaba sendo parecido. De tal forma, parece-me que o nível subjetivo (o plano particular, se diz em teoria literária), alinhavado pelo foco narrativo de meu protagonista, sobrepõe-se ao plano público.

O que criei, portanto, e que imagino refletir milhares de subjetividades, pretende uma outra nuance da realidade, sem perder de vista que todo nosso referencial sempre partirá da realidade, nossos símbolos e signos, de tal forma, o que se constrói ficcionalmente trata-se de uma realidade literária, o quanto de fato ela toca o mundo ao redor já é outra coisa.

Enfim, em Homem Extraordinário você trata de alguma questão ainda não tratada?

Você já fez uma pergunta que nunca tenha sido feita, inclusive por você mesmo!? (risos).

Nossa atual convicção, teoricamente derivada de autores como Bakhtin, Compagnon ou mesmo Gerárd Genette, pauta pela impossibilidade da originalidade; no entanto, não precisamos, a exemplo de como a Modernidade levou o assunto a sério, morrer de desespero por isso. Não acho que aquele grande ® da marca registrada seja de fato o maior valor a ser perseguido. Cada vez mais, enquanto avançamos historicamente, seremos reprodutores, daí que o pastiche, a paródia, o intertexto, enfim, formas antes consideradas derivadas da arte, tenham assumido um lugar de severa importância.

Parece-me que uma boa conduta da Pós-modernidade é justamente essa, a de não se importar muito com a originalidade, dando a ela uma condição de metanarrativa (estou pensando aqui em Lyotard e Baudrillard, eventualmente, em Bloom).

Contudo, confesso que não li ainda, em livro algum, a descrição daquele fenômeno de que falamos há pouco, e que talvez possa ser algo central em meu livro, a contaminação. O que, de fato, põe uma manifestação na rua? Não sei responder a nada disso, para mim, ainda é algo bastante novo, e que fará parte de estudos futuros (não de minha parte, obviamente).

Em Homem Extraordinário, contudo, a questão vai um pouco além, e aí me concentro no amadorismo de nossas articulações políticas e governistas. Diante de um amplo e implacável momento de manifestação por contaminação, seja por qual motivo for, algo quase a chamar uma guerra civil decorrente da polarização política, por exemplo: como lidaríamos com isso?

A parte final de meu livro se apoia justamente em uma imaginada imperícia de nossos atores políticos e sociais para lidar com a questão, respondendo a tudo da forma antiga de se impor, pela tortura.

Eis uma temática fulcral do livro, a tortura.

Poderia agora falar um pouco a respeito de seu primeiro livro, A inesperada visita da Santa Morte ao jovem Silviano das Flores? É possível apostar em um apelo comercial com um título longo assim?

A repercussão desse livro foi mesmo uma grata surpresa para mim; embora não traduzido para outras línguas, penso que alinhavado pela figura da Santa Morte (tão importante e disseminada em outras culturas), verificamos a venda de exemplares para leitores de países como EUA, México e Itália. Rendeu-me, também, a interação com leitores de vários estados brasileiros, o que acabou sendo muito interessante. De outra forma, fui surpreendido com convites para eventos, palestras e participação em grupos de leitores, tudo movimentado pela abordagem da temática da morte, topos recorrente, sem dúvida, mas, mesmo assim, sempre atual.

De forma muito resumida, é um livro sobre quando, ainda jovens, tomamos consciência de nossa finitude, e de como nossas atitudes serão desdobradas a partir de então. Restamos paralisados pela ideia de que deixaremos de existir, inventamos uma transcendência ou simplesmente aproveitamos a vida? Enfim, formalmente, emulo o grande tesouro literário sul-americano, o realismo mágico, o título, que mais parece um trem desgovernado, já dá indícios disso, mas sem gestar uma obra que tecnicamente poderia ser assim classificada.

Ufa, acho que estamos cansados, não é mesmo!?

Vamos adiar a morte para outra oportunidade, pode ser!?

Ah, sim, com relação ao apelo comercial. Resumidamente, não me iludo, acho que não venderei absolutamente nada. “O padrão tem sido rebaixado através dos anos”, essa é uma frase de um filme que já ficou antigo; imagine só se atualizada? Não vou me esforçar para escrever algo de que não gosto, buscando apenas uma maior tiragem de exemplares; acho que fazer concessões pode ser interessante, desde que de fato haja uma justificativa plausível (mas não é interessante para mim); o furor do mercado, o número de livros vendidos, sinceramente, são coisas que não me importam. Em resumo, sou realista e não me iludo, acho que não venderei absolutamente nada, ou perto disso.

Eu estou sinceramente cansado, gostaria de me deitar.

De qualquer forma, gostei dessa conversa; deu-me aqui algumas ideias para outras histórias. Fico grato por isso!

Link para o livro:

https://www.11editora.com.br/livraria/homem-extraordinario

CIDA SIMKA

É licenciada em Letras pelas Faculdades Integradas de Ribeirão Pires (FIRP). Autora, dentre outros, dos livros O enigma da velha casa (Editora Uirapuru, 2016), Prática de escrita: atividades para pensar e escrever (Wak Editora, 2019), O enigma da biblioteca (Editora Verlidelas, 2020), Horror na biblioteca (Editora Verlidelas, 2021), O quarto número 2 (Editora Uirapuru, 2021), Exercícios de bondade (Editora Ciência Moderna, 2023), Horrores da escuridão (Opera Editorial, 2023), Dayana Luz e a aula de redação (Saíra Editorial, 2023) e Mariano (Opera Editorial, 2024). Colunista da revista Conexão Literatura.

SÉRGIO SIMKA

É professor universitário desde 1999. Autor de mais de seis dezenas de livros publicados nas áreas de gramática, literatura, produção textual, literatura infantil e infantojuvenil. Idealizou, com Cida Simka, a série Mistério, publicada pela editora Uirapuru. Colunista da revista Conexão Literatura. Seu mais recente trabalho acadêmico se intitula Pedagogia do encantamento: por um ensino eficaz de escrita (Editora Mercado de Letras, 2020) e os mais novos livros de sua autoria se denominam Exercícios de bondade (Editora Ciência Moderna, 2023), Horrores da escuridão (Opera Editorial, 2023), Dayana Luz e a aula de redação (Saíra Editorial, 2023) e Mariano (Opera Editorial, 2024). 

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