É
fato bem conhecido que Fiódor Dostoiévski tenha sido um dos mais importantes
escritores russos – se não o mais importante –, tendo influenciado gerações de
escritores e pensadores que o precederam. Ainda assim,o autor continua a exercer
grande influência nos dias de hoje. A propósito, o escritor russo Alexey Rémizov,
durante seu tempo de exílio em Paris, chegou a dizer a seguinte frase:
“A Rússia é Dostoiévski. A Rússia não existe
sem Dostoiévski.”.

As
ideias do autor russo e o seu estilo de escrita único já foram objeto de estudo
de diversos pensadores ocidentais e serviram de influência para muito do que se
conhece hoje em literatura, filosofia e até para teoria e crítica literária.
Agora, por quais motivos Dostoiévski influenciou tanta gente? O que ele
escreveu de tão inovador e quem foi influenciado pelo mestre russo? O que ele
fez pela literatura e pelo pensamento ocidental? Este estudo tem como objetivo
responder a tais perguntas; porém, considerando a extensa influência do
escritor russo em nossa cultura, o foco principal do estudo serão alguns dos
mais influentes autores que lidam com ideias semelhantes às de Dostoiévski –
aqueles que se inspiraram no escritor russo, tendo-o como um de seus maiores
mestres, incluindo entre tais autores não somente escritores de literatura, mas
também pensadores nas áreas defilosofia e teoria literária.

Dostoiévski
exerceu grande influência sobre pensadores ocidentais cujasobras formaram grande
parte da nossa cultura atual. Entre tais pensadores, os que mais se destacam
são Friedrich Nietzsche, Hermann Hesse, Albert Camus e o também russo, filósofo
e crítico literário, Mikhail Bakhtin, o qual viu na obra de Dostoiévski
material para uma de suas mais relevantes contribuições para a teoria
literária. Este fora conterrâneo de Dostoiévski e influenciado, principalmente,
pela estrutura do mestre russo. Por tais motivos, começaremos por Bakhtin,
analisando primeiramente a estrutura e, em seguida, o conteúdo (pois é a
estrutura que leva ao conteúdo – no caso desta análise, de forma única).
O
russo Mikhail Bakhtin, autor do livro Problemas da Poética de Dostoiévski,
explica ateoria do romance polifônico, tendo como base de sua teoria seus
estudos sobre a obra de Dostoiévski. Ele mostra como o escritor russo inovou
seu estilo literário, apresentando não apenas o seu ponto de vista, mas também
narrando de forma com que as diversas percepções das personagens, as suas
consciências, estejam presentes no texto. Segundo Bakhtin, Dostoiévski não foi
apenas o primeiro, mas, até então, o único autor a escrever um romance
polifônico; isto é, onde há diversas vozes narrativas. No primeiro capítulo de
seu livro, Bakhtin diz:
“Dostoiévski é o criador do
romance polifônico (…). A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena
como a palavra comum do autor; não está subordinada à imagem objetificada do
herói como uma de suas características, mas tampouco serve de intérprete da voz
do autor. Ela possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se
soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e
com as vozes plenivalentes de outros heróis”

Mikhainl Bakhtin. Problemas da Poética de Dostoievski. Tradução de Paulo
Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 5.
Com
tal discurso, Bakthin defende contrapontos às críticas anteriores feitas sobre
Dostoiévski, dizendo que o autor criou um estilo próprio em que – diferentemente
dos romances que geralmente mostram a consciência do autor por meiodum único
ponto de vista – a consciência não é única, mas sim diversa; os diálogos não
têm um fim certo;cada ideia é desdobrada em duas e os personagens têm voz
própria.        
            E tal voz própria demonstra,
em romances como Crime e Castigo, a
existência de personalidades únicas, que expressam ideias própriascom as quais
o próprio autor não concorda em absoluto – pelo menos não admitiria a si mesmo
que concorda (talvez o subsolo de sua consciência concorde). Tal peculiaridade
pode ser exemplificada pelas ideias do protagonista Raskolnikov, que se
considera um homem superior; que possui o direito de matar.
Ao
observar a formação das vozes que dialogam em sua obra, nota-se também como tal
teoria – a da existência de diversas vozes e camadas de consciência –dialoga
com o significado de subconsciente na obra de Dostoiévski. Significado este
pode ser salientado no próprio “subsolo” da obra Memórias do Subsolo; isto é,o lado escuro e sombrio da alma humana,
do qual o próprio homem foge, escondendo de si mesmo a existência de tal
subsolo. Tal metáfora, obviamente seguida pelo significado que carrega,
influenciou muito autores como Nietzsche,
Camus e vários outros, os quais deram continuação ao pensamento existencialista
de Dostoiévski.

 É
inegável a profundidade da obra de Dostoiévski. O autor criou personagens nada
planos, totalmente mocinhos ou totalmente heróis.A bem da verdade, os
personagens deste grande mestre russo são vívidos e humanos: têm consciência
própria, são contraditórios e, muitas vezes, ressentidos com eles mesmos ou com
o mundo que os cerca. O narrador de
Memórias
do Subsolo
é um grande exemplo disso – um homem que nega a própria
consciência e sente-se perseguido por ela. Um estranho a si mesmo. Um
estrangeiro a si mesmo, talvez?
Estrangeiro
comoMersault: o protagonista do romance de Albert Camus – um dos autores
influenciados por Dostoiévski. Mersault, em O
Estrangeiro,
mata um árabe sem um motivo aparente – o sol em seu rosto,
porventura.Mersault é indiferente ao mundo. Por estar além da sociedade,ele não
age de acordo com as regras sociais e morais. Não chora no enterro de sua mãe;
não se arrepende de matar um ser humano a sangue frio. Diferentemente de
Raskolnikov – que age por seu seus princípios, visto tersua teoria de que
homens superiores estão acima da moral e tem direito de cometer crimes, mas
que, no final se arrepende e se entrega à polícia, admitindo não ser aquele
homem acima da moral que se imaginava ser –,Mersault não tem um princípio que
ele defenda com seu crime, ele simplesmente faz o que tem vontade;ele não pensaou teoriza sobre ser acima da
moral, ele age sendo além da moral e
não se importa sequer em ser condenado à morte como resultado de suas atitudes.
O
protagonista do romance de Camus poderia muito bem ser – porém, sem se importar
com isso, diferentemente de Raskonikov – uma espécie do super-homem idealizado
por Nietzsche. Teoria esta que, aliás, é notavelmente inspirada nas ideias do
protagonista de Crime e Castigo,
considerando as semelhanças entre os dois, e também visto que Nietzsche era um
leitor ávido de Dostoiévski. O próprio filósofo disse ter lido Dostoiévski, fazendo
a seguinte declaração em relação ao escritor russo:“o único psicólogo com que tenho algo a aprender: ele pertence às
inesperadas felicidades da minha vida, até mesmo a descoberta Stendhal.”
. E
sobre sua leitura de Memórias do Subsolo, Nietzsche declarou:Chorei
verdade a partir do sangue.”
O filósofo costumava fazer diversas referências a Dostoiévski em seus
escritos, resultando, assim, em uma grande influência em suas ideias.           
            Além da notável influência de
Raskonikov com sua ideia do homem superior na teoria do super-homem, é possível
notar mais traços do escritor russo na obra de Nietzsche. É o que ocorre
quando, por exemplo, um trecho de
Memórias
do Subsolo
e um dos aforismos da
obra Além do Bem e do Mal, de
Nietzsche, se assemelham em sua ideia principal:
“Todo homem tem algumas
lembranças que ele não conta a todo mundo, mas apenas a seus amigos. Ele tem
outras lembranças que ele não revelaria nem mesmo para seus amigos, mas apenas
para ele mesmo, e faz isso em segredo. Mas ainda há outras lembranças que o
homem tem medo de contar até a ele mesmo, e todo homem decente tem um considerável
número dessas coisas guardadas bem no fundo. Alguém até poderia dizer que,
quanto mais decente é o homem, maior o número dessas coisas em sua mente.” –
Memórias do Subsolo, Dostoiévski
Tal trecho explica o conceito de subsolo como a
parte sombria, oculta da alma humana, a qual o homem esconde de si mesmo. Algo
além daquilo que pode admitir a si mesmo, que fica no subsolo de sua
consciência e é mascarado para si mesmo, por suas próprias ações e palavras. E
é sobre isso que fala Nietzsche no aforismo 289 de Além do bem e do mal:
           
“Um eremita não crê que um
filósofo – supondo que todo filósofo tenha sido antes um eremita – alguma vez tenha
expressado num livro suas opiniões genuínas e últimas: não se escrevem livros
para esconder precisamente o que se traz dentro de si?” – “ele duvidará
inclusive que um filósofo possa ter opiniões ‘verdadeiras e últimas’, e que
nele não haja, não tenha de haver, uma caverna ainda mais profunda por trás de
cada caverna – um mundo mais amplo, mais rico, mais estranho além da
superfície, um abismo atrás de cada chão, cada razão, por baixo de toda
‘fundamentação’. Toda filosofia é uma filosofia-de-fachada – eis um juízo-de-eremita:
‘Existe algo de arbitrário no fato de ele se deter aqui, de olhar para trás e
em volta, de não cavar mais fundo aqui e pôr de lado a pá – há também algo de
suspeito nisso’. Toda filosofia também esconde uma filosofia, toda opinião é
também um esconderijo, toda palavra também uma máscara.”.
Tal trecho da obra de Nietzsche, somado ao fato
do filósofo ter sido um leitor ávido de Dostoiévski, demonstra a influência
deste em sua obra, em sua forma de pensar. Dostoiévski, em Memórias do Subsolo, foi fundo em sua análise psicológica de seu
protagonista, mostrando ao leitor como as pessoas mascaram sua consciência com
palavras e atitudes, e que negam até para eles próprios, deixando imaginar a
possibilidade de haver mais subsolo sob o subsolo. Ou seja, que o ser humano
está tão distante de si mesmo quepode não saber até onde chega a sua
consciência, tudo o que não admite a si mesmo. O que acaba sendo, na verdade, a
sua essência.
Tal observação também está presente na obra de Albert
Camus quando, no ensaioO Mito de Sísifo,
ele diz: “Um homem é mais homem pelas coisas que silencia do que pelas que
diz.”, mostrando, assim, como segue o pensamento de Dostoiévski; em que a
essência psicológica humana está em seu subsolo, não em suas máscaras.
Mas…afinal: o que seria tal essência? Que
encontramos no subsolo? Diálogos, perguntas sem respostas certas, diversos
ponto de vistas que se equivalem entre si, como seus personagens. O subsolo
possui diversas vozes. Diálogos vivos, cada um pensante e com consciência
própria, como os personagens do grande escritor russo. 
            Talvez a polifonia presente em
seus livros venha do subsolo de sua alma; talvez cada um de seus personagens,
tão contraditórios entre si, represente um de seus alter-egos que o autor nega
a si mesmo, mas que os conta em livros, na forma de personagens. Assim, é
possível que o autor acabe por mascarar, como diz Nietsche, suas ideias com
palavras que mostram outras ideias. Talvez o subsolo seja infinito e não haja
uma ideia certa; uma única com a qual concordamos efetivamente, mas apenas um
diálogo infinito, como a obra de Dostoiévski.
Aí está um motivo, talvez, para tamanha
repercussão de sua obra: assim como a mente humana, a obra de Dostoiévski é
questionadora e instigante; às vezes pode parecer indecisa e suscetível a
diversas interpretações. É uma obra que ganha significado a cada leitura, a
cada leitor. É uma obra que planta questões na mente do leitor, que não deixa
tudo claro demais, cansando a leitura com obviedades, mas que constrói
diferentes caminhos de reflexão. É uma obra, de fato, pensante, pulsante. Talvez
seja esse um dos diversos motivos pelos quais o autor russo influenciou tantas
e tantas gerações de escritores, incluindo alguns dos mais importantes, como Nietzsche,
Camus, Hesse, Kafka, Woolf e até Freud. E continuará, decerto, a influenciar as
futuras gerações.



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