Infâmia, segundo o dicionário: ação ou ato infame. Desonra,
ignômia, torpeza. É justamente casos de desonra, ignômia e torpreza que Jorge
Luis Borges pretende coletar no livro “História Universal da Infâmia”,
relançado este ano pela editora Globo.
A origem do volume remonta a 1933, quando Natalio Botana,
para escândalo dos jornais sérios, lançou o periódico “Crítica”, de orientação
sensacionalista. Como os concorrentes tinham seus cadernos literários, o
Crítica lançou a revista Multicolor de los Sábados.
A revista, belamente ilustrada, misturava literatura com
jornalismo marrom na tentativa de agradar ao paladar da massa.
Borges, convidado a colaborar, teve de adequar sua prosa a
essa demanda. O resultado foi uma mistura de jornalismo com literatura, de
fatos reais com imaginários, ao estilo do que fazia Edgar Allan Poe.
História universal da Infâmia reúne histórias de ladrões,
piratas, assassinos e mentirosos. Mas não se engane: Borges consegue fazer
dessas histórias, típicas do jornalismo marrom (que um intelectual brasileiro
definiu muito bem com a frase “se espremer sai sangue”) verdadeiras obras de
arte da literatura do século XX.
As histórias prendem o leitor pelo inesperado. 
É o que ocorre, por exemplo, com “O Atroz Redentor Lazarus
Morell”. Morell era um pilantra, líder de uma quadrilha que estendia sua
atuação por vários estados dos EUA no século XVIII. Sua riqueza vinha de um
estratagema simples: ele e seus comparsas convenciam os negros a fugirem das
fazendas e lhes providenciavam os meios para a fuga. Quando o negro fugia, ele
o pegava e vendia para outro fazendeiro. Era uma mina de ouro. 
Morell era tão infame que costumava fazer pregações
religiosas que entretiam toda a população de uma cidade enquanto seus comparsas
roubavam os cavalos da audiência. 
Outra história absolutamente inesperada e que dá o tom do
volume é “O Impostor Inverossímil Tom Castro”. 
Em 1854 naufragou no Atlântico o vapor Mermaid, que ia do
Rio de Janeiro a Liverpool. Entre seus passageiros estava o militar inglês
Roger Charles Tichborne. A mãe, recusando-se a acreditar na morte do filho,
passou a publicar nos principais jornais do mundo anúncios pedindo informaçòes
sobre o mesmo. 
Tom Castro, um marinheiro inglês filho de açougueiro
resolveu se passar por Tichborne. Não poderia existir duas pessoas mais
diferentes. Enquanto Tichborne era alto, magro, tez morena, cabelo negro muito
liso, e falava com sotaque francês, Tom de castro era baixo, gordo, sardento,
cabelos encaracolados castanhos e não falava uma vírgula de francês. 
Ainda assim, Castro conseguiu enganar a mãe do militar e
grande parte da sociedade inglesa da época. O argumento é que a diferença entre
os dois era tão grande que ninguém seria tão doido de se passar por outro sem
nem ao menos tentar alguma alteração física. Portanto, aquela criatura
completamente diferente só poderia mesmo ser Tichborne mudado pelos ares do
Brasil. 
Histórias como essa triscam no burlesco. Outras são
impressionantes, como “O Tintureiro Mascarado Hakin de Merv”. Nela, um profeta
aparece com uma cabeça de boi cobrindo o rosto e argumenta que foi visitado
pelo anjo Gabriel, que lhe alterou o rosto de tal forma que, quem o visse
ficava cego com a beleza divina do mesmo. 
Hakin arrebanha milhares de fiéis, cria para si um harém de
100 belas mulheres cegas e coloca em perigo o califado. 
A cena em que ele é desmascarado está certamente entre as
mais chocantes da literatura universal. 
Borges acrescenta ao livro um índice de fontes
bibliográficas. Mas apenas para enganar o leitor. A fonte do conto sobre o
falso profeta simplesmente não existe, dando a entender que Borges inventou a
história. 
Essa, aliás, era a principal característica de Borges. Ele
tinha intenção de fazer o leitor confudir realidade com ficção no que ficou,
mais tarde conhecido como realismo fantástico. 
Vale destacar nessa edição o cuidado gráfico que a editora
Globo dispensou ao volume. O formato, menos largo que o normal, dá uma
elegância indiscutível ao livro. Além disso, a capa traz uma ilustração de Will
Eisner, um dos maiores desenhistas de histórias em quadrinhos de todos os
tempos. Não há como passar despercebido na livraria. “História Universal da
Infâmia”salta ao olhos e chama nossa atenção no meio dos outros livros. 
Um cuidado editorial que prestigia a genialidade de Borges,
considerado por muitos, inclusive o autor desta resenha, o mais importante
escritor do século passado. 
Para os leitores brasileiros o livro tem uma atração a mais:
o conto “A História dos Dois que Sonharam” que inspirou Paulo Coelho a escrever
“O Alquimista”.

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