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O que une os quatro autores neste livro de crônicas Não temos wi-fi (Penalux, 2018) é o poder da crítica em vários campos do saber: a crítica literária, a política, a social e até mesmo a pessoal, extrapolando os limites de um saber específico e recriando-se no subjetivo, com as impressões sobre o universo contemporâneo que os cerca e, voltando no tempo, na experiência habitável de tais escritores. A linguagem se faz morada, casa habitada por cada autor em sua vivência com o real. O externo se torna habitação das impressões recorrentes destes quatro autores que compõem o livro, que entre a crônica, o ensaio e a poesia, expõem a nervura da realidade sem medo da exposição.
São eles autores já com uma larga trajetória pela literatura, com vários livros publicados entre romances, contos, crônicas e poesias. O livro é dividido em quatro capítulos, um para cada autor: “O avesso da medida”, de Cyelle Carmem; “Um sol vermelho no fundo turvo do espelho”, de Lau Siqueira; “Lupas de elefante”, de Letícia Palmeira e “Conversas de rodapé”, de Linaldo Guedes. O título não poderia ser mais convidativo e irônico. Autores com larga experiência nas redes sociais convidam os leitores a darem um stop na rede internética para falarem de coisas humanas, o que revela nossa humanidade em face do tempo, quando ainda não tínhamos esta febre de internautas. Não temos wi-fi é um louvor à nossa humanidade, tão corroída pelo preconceito, pela corrupção, pela desumanização e liquidez do ser, que nos tornaram reféns da crueldade e do medo. Esse belo livro nos vem falar da solidez do ser, dos laços imprescindíveis dos afetos, o que nos torna ao mesmo tempo, semelhantes e diferentes nessa rede inextrincável da vida.
Na crônica “Despertador literário”, Cyelle Carmem diz: “Mas na verdade a poesia me deixou acordada para sair de mim, libertar-se de mim”. A tônica maior de suas crônicas é despertar o ser sobre sua verdadeira identidade em face do mundo. Questões ligadas às minorias, como o teor da negritude, uma voz que não quer ser abafada e esquecida pelo preconceito de uma sociedade preocupada com seu próprio umbigo e que não vê no irmão a máxima maior da fraternidade que uniria todos os seres sem maiores violências e objeções. Cyelle Carmem levanta sua voz de liberdade perante a incompreensão humana. Suas crônicas são carregadas de críticas ao racismo, mas também aponta para outros temas, como as relações entre os casais, a sua experiência de viajante e o mundo virtual. Também discursa sobre cotidianidades, como o gênero da crônica requer, mostrando temas atuais e presentes na sua vida, regredindo, ao mesmo tempo, ao seu próprio passado para contrastá-lo com o nosso dia a dia, pois cronos é tempo. Tempo que nos circunda, nos envolve. “O avesso da medida” é o grito da libertação, daquilo que é limitado pelo olho da desrazão opressora.
Em “Lupas de elefante”, Letícia Palmeira vem responder às nossas questões filosóficas – quem somos e para que viemos – trazendo à lume questões presentes nas nossas relações em torno da vida. As lupas de elefante parecem bem dizer dessa maximização de nossa vista. O olhar é recorrente em seus textos, o olhar totalizante sobre as coisas do nosso universo cotidiano. Fala desde as miudezas (salão de belezas, novelas, amor virtual) aos temas mais sublimes como a amizade, o amor e a espiritualidade. Como uma arguta observadora da realidade, revela aos leitores as camadas superpostas do real sem temer represálias. Com ironia, sarcasmo e doçura, tudo misturado, faz de algo minúsculo uma coisa grandiosa, como se fosse possível cobrir a crosta dura da nossa realidade com o véu fino da poesia. Assim, suas crônicas se enchem de beleza pelo dom de observar com lupas de elefante, hiperbolizando o cotidiano com a lupa introspectiva de seu ser transbordante e aberto à imaginação mais fecunda.
Por fim, temos “Conversas de rodapé”, de Linaldo Guedes, que apresenta o lado mais humorístico do livro, como conversas que estendem os discursos críticos sobre várias temáticas nos rodapés da vida, fazendo a ponte entre a escrita (o miolo) e os rodapés (real), o que se expande do texto à sua continuidade e desdobramento no espaço exterior. O papel do escritor e do receptor, longe dos holofotes editoriais. Ele diz, em “Futurologia”: “Literatura não é o que você escreve. É o que os outros leem (mesmo que seja num futuro em que não sabemos qual)”. Com uma crítica mordaz, o autor nos fala sobre o universo da literatura com grande empenho, nos mostrando os acertos e mazelas do trabalho literário. Também discursa sobre música, política, sociedade e os relacionamentos humanos. O escritor aqui em questão faz um verdadeiro mergulho neste mar abarcante da literatura, descortinando para nós, leitores, o que se esconde por trás de suas dobras movediças, que, por lado, pode nos afundar, mas que por outro, pode nos libertar da nossa pequenez a partir não de uma vaidade ou bajulação empolgante, mas no nosso poder de criar e inventar através da mais bela poesia, o que nos torna sólidos como uma rocha em meio ao mar tempestuoso e contrário aos nossos sonhos.
Portanto, nestes quatro autores geniais, temos a expressão rica e original da criação literária, no terreno da crônica, trazendo para nós, leitores, os valores mais humanos, o que nos torna seres especiais, não em navegar no terreno movediço da liquidez imprecisa, mas no que nos solidifica enquanto pessoas que somos e nos adentramos na carnadura libertadora. Uma voz que não se afunda no mar vacilante do cosmos, mas que, humanamente, nos funda como uma fortaleza em meio à vastidão do real, que por ser flutuante, teme em fincar a solidez em lugar infértil. Mas pela força das palavras, da própria poiesis, tais escritores fundam castelos firmes como a utopia do visível sobre o invisível, da força sobre a fraqueza do nosso mundo ondulante e escorregadio. Não temos wi-fi nos conecta não através de senhas desconhecidas, mas a partir do familiar e habitual, da chama que reside em nosso interior.
“Não temos wi-fi”, coletânea de textos em prosa. Autores: Cyelle Carmem, Lau Siqueira, Letícia Palmeira e Linaldo Guedes, 90 págs., R$ 35,00, 2018.
Link para compra: http://editorapenalux.com.br/loja/nao-temos-wi-fi
E-mail: vendas@editorapenalux.com.br
*SOBRE A RESENHISTA
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.