O corpo jazia quase inerte no chão.

Enquanto o observava, ela concluiu que o tempo, apesar de poderoso, nunca fora
suficiente para ajudá-la a livrar-se da obscuridade sombria que residia na sua
alma atordoada, angustiada e dilacerada pelas terríveis e diversas emoções, que
ela nunca conseguira exorcizar.

Dirigiu novamente o olhar, para o homem ferido aos seus pés e pensou
nos inúmeros seres humanos, que praticavam os mesmos atos abomináveis que ele
cometera e o quanto tais atitudes eram capazes de exterminar, não apenas o
corpo de uma pessoa, mas também a sua alma.
Para encontrar a justiça e a paz, ela acreditava plenamente que não
poderia fraquejar ou se desviar do caminho que escolhera. Porém, perturbava-lhe que segredo algum fica oculto para sempre e
que nenhum passado nebuloso e terrível como o dela, poderia tornar-se um
presente brilhante e menos ainda, um futuro pleno e feliz. 
As mágoas nunca se extinguiram, apenas adormeceram para depois
despertarem poderosas e destrutivas, acorrentando-a no frio vértice da maldade,
onde a ira, a aversão e o ódio reinavam profundamente. Entretanto, ela sentia
que o momento de conceder-lhe o indulto estava próximo e para alcançar este
objetivo planejara um perdão rubro, dilacerante, fúnebre, assim como fora toda a sua vida, desde a primeira vez em que ele desrespeitando a sua inocência pueril,
tocara-a de forma repugnante e desprezível.
Estavam no cume de uma bela montanha e lentamente a camisa dele se
encharcava envolvendo-o em um manto escarlate. Os seus pecados esvaiam-se
juntamente com a vida que ali terminava. Neste instante ele suspirou de forma
profunda e pesarosa, enquanto um jorro de sangue inundava a relva ao seu redor.
Então, tomado por um frenesi agonizante, ele conseguiu entreabrir os lábios e
sussurrar um último pedido antes que a vida finalmente o abandonasse: 

—  Me perdoe.

Ao ouvi-lo, o nojo e a aversão que sentira durante anos, se
intensificaram. Neste instante, uma doce brisa sacudiu uma mecha dos cabelos
grisalhos dele e uma pequena flor do campo trazida pelo vento, caiu-lhe na
testa. Apressadamente ela abaixou-se e retirou a flor, com o temor de que mesmo
morto, ele fosse capaz de contaminar sordidamente esta frágil forma de vida.
Em seguida, ela levantou-se, a arma ainda em punho e dirigiu-lhe um
último olhar. Recordou-se então de tudo que vivera até aquele momento e da
criança feliz que um dia fora. Depois, caminhou lentamente para o despenhadeiro
à frente e sentindo-se totalmente liberta e afortunada, lançou-se para as águas
convidativas do mar que cortavam a encosta da montanha, e antes que o oceano a
envolvesse de forma redentora nos seus ternos braços, ela fechou os olhos e
sentiu que apenas através da morte é que conseguira finalmente perdoá-lo.


*Ilustração de Charlie Bowater



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