Caminho calmamente e a cada passo que dou sinto adentrar-me na
escuridão da noite. As sombras me possuem e envolvem cada vez mais. Sobre meus
ombros caem grossos pingos de chuva e por meu rosto, passam longos dedos de um
vento gélido e cortante. Como um mero espectador da vida, observo as folhas
desprenderem-se das árvores numa espécie de suicídio coletivo. 

De repente, vislumbro um grupo de pessoas que em círculo dirigem
olhares pesarosos para algo estendido sobre o asfalto.  Aperto os olhos na ânsia de vislumbrar o que
é, então entre a nebulosa dos faróis, descortina-se algo que me surpreende: ali
jazia meu corpo caído sobre um grande manto escarlate que se estendia pouco a
pouco pelo chão.
Olho ao meu redor e não consigo encontrar significado em nada do que
vejo. De repente ouço um grito dilacerante e entre aqueles que observavam a
lastimável fatalidade, surge minha esposa aos prantos. Ela então, senta-se no
asfalto molhado de chuva e de sangue e carinhosamente aconchega minha cabeça em
seu colo e sussurra em meu ouvido: 
– Não vá por favor! O que será de nós sem você? O que será de mim sem
seu amor?!
Tento lhe dizer que também a amo, muito, que a vida ao seu lado fora
incrivelmente bela e permeada de todos os sentimentos e alegrias que apenas um
lar repleto do mais puro e intenso amor pode alcançar, mas infelizmente minha
voz já não é audível. Neste instante, penso no maior presente que ela me dera:
nossa filha, uma criança tão doce e amável que era capaz de acalentar até os
mais duros de coração. Em minha mente, recordo seu esplendoroso sorriso de
criança sempre que eu abria a porta de casa e ela corria para me abraçar.
Ah como queria agarrar esta vida e tê-la para toda a eternidade! Em pé
na chuva assistindo minha despedida deste mundo chorei, mas não eram lágrimas
de tristeza, eram de agradecimento e alegria por tudo pelo qual eu fora
agraciado, afinal poucos são aqueles que assim como eu, chegam ao fim de suas
vidas ostentando um coração repleto de amor e infinita felicidade.
Em seguida, notei que o negrume da noite se intensificara, as estrelas
apagavam-se uma a uma e eu já não sentia o toque da chuva em minha pele.
Chegara o irrefutável momento de minha partida. Fechei os olhos e tomado pela
crescente nostalgia de tudo que eu vivera durante meus 30 anos, fui invadido
por uma imensa saudade e a certeza plena de que no coração dos que me amavam eu
para sempre existiria.
* Pintura de Leonid Afremov



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