Era em uma
meia-noite agreste, eu me lembro bem, quando pela primeira vez me deparei com
aqueles versos imortais, quase proféticos do poema de Poe, O Corvo. Não sei que
idade eu tinha, mas sei que era jovem e, até então, religião nenhuma eu seguia.
Veja bem que disse “até então”. Alguns são católicos, outros evangélicos,
outros espíritas, outros ateus, cada um tem seus deus, ou tem deus nenhum e é o
deus de si mesmo. Acho que até então, eu era ateu, eu era o meu próprio deus.
Mas, a partir do segundo no qual meus olhos derramaram-se sobre aqueles versos,
eu senti que aquilo não era somente um poema. Era mais que arte, aquilo era o
sentido da existência em sua forma mais pura, era uma nova bíblia, a minha
bíblia, o anúncio da chegada de meu deus: O Corvo. O deus que me salvaria do
sofrimento da perda de minha Lenore, que até então me assombrava a alma e me
chamava para sua companhia, e eu tentava me refugiar das lembranças
melancólicas me afundando nos livros, até que encontrei uma possível forma de
escapar daquelas lágrimas.
Naquela noite,
em que sozinho em minha sala, entre pilhas de livros nas estantes ao redor e em
frente à lareira, lia diversos livros antigos encontrados ao acaso na
biblioteca de meus avós, quando encontrei um exemplar antigo e empoeirado da
obra completa de Poe. Abri em qualquer página aleatória, e o poema O Corvo (The Raven, pois era uma edição com os textos originais, em inglês)
saltou aos meus olhos, como uma sombra negra que voava para fora do livro. O li
de uma sentada, em voz alta, sem parar sequer para respirar. O bebi de um só
gole, até que O Corvo tomara minh’alma por completo, era meu deus, minha única
crença, um sentido para tudo. Alguém pode se perguntar: como pode alguém
considerar um corvo de um poema como um deus? O mesmo pergunto eu para aqueles
que consideram qualquer outra figura mítica como um adorado deus. E o meu é o
Corvo, pois ele assim me disse, e à cada releitura do poema percebo a
veracidade de sua existência. Cada vez que leio o poema, ele ganha mais vida e
o Corvo parece se aproximar mais de mim, como se ele vivesse dentro daquelas
palavras e a leitura delas o resgatasse das trevas contidas na tinta de cada
letra.
O som das
palavras ecoava pelo teto alto da minha sala antiga, nos antigos lustres foscos
do teto, nas paredes distantes e frias, no assoalho de madeira do piso e na
porta de entrada da casa. Mas o curioso é que quando eu lia trecho dos versos
que diziam “Nevermore”, o eco tinha uma voz diferente da minha, mais grave,
mais diluída na noite, como se fosse dita por outra voz que não a minha, outra
voz que não humana. Logo que notei isso, tive arrepios, mas segui com a leitura
do poema sem interrompê-la por nem um milésimo de segundo. Mas a cada
“Nevermore”, a voz do eco a repetir o verso tornava-se mais diferente da minha,
até que, quando cheguei à última estrofe, temi que o Corvo realmente entrasse
em minha sala, pois sua voz era cada vez mais distinguível – a essa altura já
tinha certeza de que era a voz do Corvo a repetir o verso. Até que, quando
cheguei ao final do poema, o eco desapareceu por completo. Não ouvi o último
verso ser repetido pelo eco, como ocorrera com o poema inteiro.
Porém, minha
obsessão estava apenas começando. Depois de terminar de ler o poema, fui até a
porta e a abri, na espera de que o Corvo aparecesse, mas o que encontrei lá
fora foi escuridão, e nada mais. Isso se repetiu por noites e noites. Não houve
noite na qual conseguisse dormir sem ler poema de Poe em voz alta, sentando na
poltrona no meio da sala, e cuidando a porta da frente a cada Nevermore que
lia, na espera ou no temor de que a criatura surgisse. Ave ou demônio, o meu
deus Corvo nunca aparecia, mas eu continuava a rezar por ele. Cheguei a decorar
os versos como uma reza, era a minha sagrada oração para o Corvo, que eu
repetia toda noite, acreditando que um dia ele apareceria. Era o meu profeta da
escuridão, que haveria de vim salvar a minha alma, haveria de vim acalentar meu
sofrimento pela perda de minha Lenore. O nome real dela não era Lenore, mas
decidi chamá-la de Lenore, pois para mim foi tão inesquecível quanto, e a sua
ausência de fere tanto quanto a de Lenore fere o narrador do poema. Conheci-a
mais do que a mim mesmo, e ela partiu, como um espelho estilhaça-se em pedaços,
assim partiu-se minha Lenore. Porém, quando chegar o corvo, não vou tentar expulsá-lo,
mas vou adorá-lo como a chegada de um deus sagrado e tão esperado. Pois, por algum
motivo desconhecido, sei que não é somente ave ou sequer demônio, sei que é um
deus, o Deus, único do universo; a cor do céu à noite é a da cor de suas penas,
é o céu anunciando a sua chegada desde as mais remotas eras. Sua alma é a
imensidão do universo e, em forma concreta, ele mostra-se em forma de corvo,
anunciando a condenação de cada alma que encontra. Como sei disso tudo? Vamos
dizer que ele me contou, em meus sonhos.
Faz muitos
anos já que rezo para o corvo, toda noite, e a cada noite sua voz parece
repetir “Nevermore” em um tom cada
vez mais alto, cada vez mais audível. Noite passada, quase senti como se o som
de sua voz viesse de dentro da minha cabeça, de tão alto que era! Comecei a ler
mais uma vez o poema agora – a repetir os versos que já decorei – mas ao ouvir
uma batida na porta, interrompi a leitura pela primeira vez em anos. Ao abrir a
porta, não foi só escuridão que encontrei, e nenhum corvo também. Mas a porta
se fechou sozinha, não me permitindo ver o que se escondia do outro lado. Só
pode ter sido o vento que a fechou, o que mais seria? E as batidas na porta
continuavam, mais altas e mais altas a cada instante, como um coração agoniado
que acelerava cada vez mais. O meu coração acompanhava o ritmo e acelerava mais
ainda, até que senti uma dor pungente, como que meu peito rasgando-se por
dentro, e minha visão começou a escurecer.
Caí no chão em
frete à porta, que se abriu. Uma tempestade torrencial começou a cair lá fora,
e a figura de uma ave negra pareceu recortar-se entre as sombras que me eram
ainda visíveis. A dor em meu peito aumentava. O Corvo olhara fixamente para
mim, com seus avermelhados olhos demoníacos. Esperei que ele fosse repetir
“nevermore”  ou que dissesse o refrão
traduzido “nunca mais”- mas nada disse ele. No entanto, a expressão de sua
existência era repetida em silêncio a cada segundo, cada batida do meu coração
parecia sussurrar o refrão do Corvo. A escuridão e o silêncio e a dor era tudo
o que eu sentia. A dor, tão intensa, que me sugava todas as forças, minha respiração
faltava… Caí no chão da sala, tentando segurar a dor que parecia jorrar do
peito e transbordar da alma. Vi então, de relance entre as sombras de dor que
me cegavam, a figura pálida daquela quem chamo Lenore surgir entre as chamas da
lareira, que já quase se apagava, e entre as chamas desaparecer. O bater das
asas do corvo sobre meus olhos transformou tudo em escuridão, até que o som de
meu coração parou.
E passei a
enxergar pelos olhos do Corvo, que viera me buscar, ouvindo meus chamados.
Imagino, às vezes, que talvez eu sempre fora o Corvo, e sonhei que era um
humano que chamava por um corvo. Se tiver sido um sonho, ou um sonho dentro de
um sonho, ou se tiver sido real, não importa mais. Foi um pesadelo que acabou
com a chegada do ruflar de asas negras da noite. Agora, minha alma, nesta
expressão, derramo eternamente: Nevermore,
nevermore, nevermore
.

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