Se não todos, a maioria de nós terá passado, durante a infância, pela experiência de estranhamento diante da figura de um Papai Noel em carne e osso. Às vezes ele nos parece demasiado alto, ou baixo demais, demasiado gordo, ou magro demais, e desconfiamos que esteja em cena um impostor. A ansiedade dos adultos pode complicar a situação, levando os pais a adiantar explicações sem que a criança tenha perguntado nada: “Parece que este ano o Papai Noel está de dieta…”, ou “Olha, o Papai Noel cresceu do ano passado pra cá; isso é porque tem mais gente no mundo pra ele atender”.
As explicações em torno da existência de figura tão ímpar podem levar a indagações inconvenientes. Por exemplo: segundo a versão mais aceita, Papai Noel seria originário da Lapônia, uma região da Escandinávia formada por terras de quatro países: Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia. Caso a Rússia resolvesse anexar a Lapônia, tal como fez com a Crimeia e o leste da Ucrânia, como ficaria a situação do Papai Noel? Receberia permissão para decolar livremente, em seu trenó voador puxado por renas, para distribuir presentes às crianças pelos quatro cantos do mundo? Mesmo obtendo autorização, não correria o risco de ver-se alvejado por algum míssil ou bateria antiaérea no trajeto ao encontro da ingenuidade e da faceirice?
Mas essas são considerações adultas, não infantis. Uma criança não olha um Papai Noel negro e pensa sobre a improbabilidade de um afrodescendente habitar o círculo polar ártico; nem vê com suspicácia cabelos e barba brancos num Papai Noel oriental. Uma criança aceita as aparências como parte do jogo misterioso que leva a um final feliz.
Muitos anos atrás, quando eu devia ter uns sete anos de idade, minha tia se vestiu de Papai Noel na noite de Natal e fez sua aparição na sala de nossa casa, carregando um saco de presentes nas costas. Ela vestia um traje de cetim amarelo-ouro, com mangas de punhos bordados com miçangas e lantejoulas, andava curvada, apoiando-se numa bengala – nossa conhecida – e portava uma máscara rígida, com barbas e bigodes de algodão, à qual se colava um gorro vermelho com pompom branco. Ela engrossou a voz para falar conosco, numa tonalidade que não chegava a ser varonil. Diante daquela colagem doméstica de elementos incongruentes, minha prima, também com sete anos, minha irmã, com cinco, e eu estacamos perplexos, maravilhados. A magia subjugou o estranhamento, e não foi naquela ocasião que desmascaramos Papai Noel. Quando por fim o fizemos, não foi em sua presença, mas por meio de conjecturas e deduções urdidas a posteriori, ao sabor das faculdades intelectivas que nos conduziriam, com o passar dos anos, à adolescência e à idade adulta.
Um dos milagres do Natal é justamente tornar crível uma figura como Papai Noel, ainda que no caso específico não corresponda exatamente à imagem que se tem dele. Não importa, o tão propalado encontro com o Bom Velhinho é algo que toda criança almeja e acolhe, talvez por simbolizar a possibilidade de que a vida não vá render-se inteiramente à objetividade tantas vezes cruel do mundo adulto, de que siga havendo um espaço e um tempo para que a bondade, o sonho e a esperança se materializem.
Talvez o maior dos milagres natalinos seja o de fazer ressurgir a criança dentro de nós.

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