Bia Barros é autora do romance Madalena, Alice que obteve menção honrosa no Prêmio Literário UCCLA – Novos Talentos, Novas Obras em Língua portuguesa -, publicado no Brasil pela editora Nós, em 2018. É formada em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero e em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Estudou roteiro em Cuba, na Escola Internacional de Cinema e TV (EICTV) e, na Espanha, com bolsa da Fundação Carolina para o II Curso de Desenvolvimento de Projetos Audiovisuais Ibero-americanos. Seu segundo romance, Peleja, foi lançado em setembro pela Primavera editorial.
ENTREVISTA:
Conexão Literatura: Poderia contar para os nossos leitores como foi o seu início no meio literário?
Bia Barros: Eu sou jornalista, então, meu ofício é a palavra e é por meio dela que tento compreender e ordenar o real. Minha estreia na literatura começou tardiamente, apesar de sempre flertar com o meio literário. Em 2016, eu trouxe minha mãe com Alzheimer, que vivia em Fortaleza (Ce), para morar comigo em São Paulo. Eu não tinha a menor ideia do que era conviver com uma pessoa com demência e o impacto que isso teria na minha rotina. Na época, não se falava muito sobre a questão do cuidado, e escrever foi a maneira que encontrei para falar sobre a dura realidade das cuidadoras. No Brasil, em quase 90% dos casos, é uma mulher que cuida do parente doente e que dedica, em média, mais de 12 horas diárias no trabalho do cuidado. A mulher envelhece nessa função e como o cuidado é visto como algo essencial do feminino não há nenhuma política pública para ampará-la. Por isso, eu achei que a história dessas cuidadoras precisava ser contada. A Maria Rita Khel diz que “a narrativa transforma a vivência em experiência”. Ou seja, ela sai do âmbito individual e privado para se transformar em uma experiência coletiva, compartilhada socialmente. Nesse sentido, a escrita foi uma ferramenta muito importante para compreender que as circunstâncias nas quais eu me encontrava não se limitavam a minha experiência pessoal, mas eram um fato social, um fenômeno perverso de um país que está envelhecendo – e de forma muito precária.
Quando o romance ficou pronto, eu procurei a Ana Lima Cecílio, que estudou comigo na FFLCH, para perguntar se tinha algum valor literário e ela me incentivou bastante a publicá-lo. Por isso, acabei inscrevendo-o em alguns concursos internacionais e ele obteve menção honrosa no Prêmio Literário UCCLA – Novos Talentos, Novas Obras em língua portuguesa. Em 2018, ele foi publicado pela editora Nós, com o nome Madalena, Alice. Eu fiquei impressionada porque, apesar de ser um livro de estreia, ele me abriu as portas para o meio literário e me fez estar em lugares e ter contato com outros autores importantes. Contar essa história deu um novo sentido a minha trajetória de vida e entendi que é aqui que eu quero estar e é como escritora que quero me definir.
Conexão Literatura: Você é autora do livro “Peleja”. Poderia comentar?
Bia Barros: Peleja foi inspirado numa reportagem do El País sobre uma idosa que morreu sem que ninguém notasse sua ausência por longos quatro anos. Na época, o Brasil estava em plena campanha eleitoral e todo mundo receoso de uma volta ao regime autoritário por causa da aproximação do Bolsonaro com os militares. Então, eu pensei em contar a história dessa mulher como uma desaparecida política da época da ditadura civil militar brasileira. Por meio das suas recordações e alucinações, a personagem rememora os crimes cometidos pelos militares e tenta fazer justiça com as próprias mãos.
No mundo real, Bolsonaro ganhou as eleições, veio a trágica pandemia, as tentativas de golpe e o livro foi se redesenhando, a tal ponto que se transformou em outra coisa. Infelizmente, no Brasil, os crimes do Estado foram – e continuam sendo – anistiados e isso traz consequências nefastas, como estamos vendo agora com essas repetidas tentativas de golpes. Na Argentina e no Chile abriram os arquivos da época das ditaduras e alguns dos militares foram responsabilizados pelos crimes que cometeram. O Brasil não fez isso e, por isso, esses agentes continuam usando a máquina estatal para praticar crimes, com a certeza da impunidade. Vide a morte da Marielle Franco, que trouxe todo o modus operandi usado no período da ditadura militar: uma pessoa infiltrada no partido para espionar a oposição, um agente do Estado arquitetando um crime e as instituições se articulando para ocultar as provas da Justiça. Enfim, para a gente entender o que está acontecendo hoje, no nosso país, a gente precisa se atentar a essas continuidades, as permanências desse modelo. A memória não é simplesmente uma recordação do passado. Ela é uma explicação do que a gente vive hoje no nosso presente.
Conexão Literatura: Como é o seu processo de criação? Quais são as suas inspirações?
Bia Barros: Cada livro tem o seu próprio processo. A maneira que escrevi Madalena, Alice não foi a mesma que escrevi Peleja porque as urgências eram outras. O primeiro, eu escrevi completamente “possuída”, na força do ódio. Em Peleja, as próprias circunstâncias, foram se compondo ao longo dessa história, transformando o projeto inicial, que era a história do desamparo de uma idosa que morreu completamente esquecida, em algo muito mais político.
A Rosa Montero tem uma frase que eu gosto muito no livro “O perigo de estar lúcida” sobre o processo criativo. Ela diz que “os romances são delírios controlados para tentar sustentar uma realidade precária demais”. Acho que todo processo criativo vem disso: dessa tentativa de ordenar o caos. De torná-lo compreensível, ou no mínimo, palatável. Meu processo criativo vem desse contato com o real. De um fato que me incomoda, que me deixa indignada e que eu tento disseca-lo, compreendê-lo. Por isso, leio, pesquiso e me debruço sobre o tema grande parte do meu tempo até começar a “incorporação” dos personagens e começar o processo da escrita em si. E, lógico, isso só é possível porque o contexto atual permite que a minha indignação se transforme em uma narrativa que possa ouvida e expressada, a partir do meu lugar de fala.
A morte é um bom exemplo disso. A finitude sempre foi um tema da literatura. Mas, antes apenas um grupo mínimo de pessoas era outorgado a fazê-lo. E nunca aparecia quem limpava a bunda do doente. Hoje, quem limpa a bunda do doente não só saiu das sombras como pode falar – e vejam só que ousadia – até escrever um livro sobre isso, como eu. Então, a ideia da morte vai ganhando novas camadas, novas perspectivas sobre esse fenômeno. O universal passa a ser realmente Universal. Agora, essa vivência ordinária, ou até banal para alguns, tem a possibilidade de se transformar em um conteúdo que pode ser pensado, contado e discutido de um modo muito mais diverso e plural.
Conexão Literatura: Poderia destacar um trecho do seu livro especialmente para os nossos leitores?
Bia Barros:
“— Lembra de mim, Coronel? — sussurrei no seu ouvido.
Ele me olhava confuso, tentando se desvencilhar.
— Que injusto da minha parte querer que o senhor se lembre de mim, não é mesmo? Afinal, foram tantas as mulheres que vocês torturaram, estupraram, mataram! Eu fui só mais uma, mais uma que vocês deixaram parir nas matas e nas celas dos DOIs CODIs para doarem os filhos como se fossem filhotes de cães. Eu fui só mais uma, Coronel! Mais uma pendurada nos paus de araras, esquecida em celas, nas matas, nas valas ou no fundo do mar. Mais uma Desaparecida!
Mas eis-me aqui, Coronel! Esta velha feia, pobre e fedida, que o senhor está vendo aqui, bem diante dos seus olhos, foi apenas mais uma das milhares de mulheres que por décadas e décadas vocês tentaram silenciar. Mas eu sobrevivi, Coronel. E hoje eu sou todas elas! E, em nome de todas nós, eu digo para o senhor, seu velho brocha, que vocês são uns parasitas que sugam o Estado e corroem as instituições, com o seu mundinho cheio de regras, insígnias e condecorações. Vocês passaram anos e anos chantageando um governo atrás do outro com a ameaça de intervenção porque não suportam a ideia de uma mudança estrutural. Vocês ameaçam a democracia com seu projeto colonizador porque querem garantir sempre os mesmos e caducos privilégios.
Fodam-se os seus soldos, as suas previdências, as pensões vitalícias das suas putinhas particulares!
Vocês se espalham como teias de aranha nas administrações públicas porque desejam ordenar o mundo da janela dos seus quarteis. (…) Vocês se alimentam do sangue daqueles que elegem como inimigo: os de esquerda, os pretos, as putas, as bichas ou os pobres. A guerra é sempre! Ela não acaba nunca. Porque é isso que permite que vocês continuem tramando os seus golpezinhos, os seus complôs. Vocês se nutrem dessa permanente instabilidade política para assegurar seus pífios papéis de mantenedores da ordem. Vocês esbravejam pela moral e pelos bons costumes, enquanto, assediam, abusam, violam, imolam tudo o que tocam. Mas, hoje, eu me rogo a prerrogativa de vos julgar.
Hoje, sou eu, esta mulher invisível e mil vezes desaparecida, que vos sentencia e vos condena. Condeno com a mesma força bruta – e com a mesma arbitrariedade — que vocês nos sentenciaram durante todas essas décadas. Não vos ofereço a prerrogativa da inocência. Julgo com os olhos cegos e com as mãos tortas da Justiça, que vocês aleijaram.”
Conexão Literatura: Como o leitor interessado deve proceder para adquirir o livro e saber um pouco mais sobre você e o seu trabalho literário?
Bia Barros: Pode comprar no site da editora Pri: https://prideprimavera.com.br/produtos/peleja-livro-bia-barros-ditadura-militar/ ou nas livrarias de bairro ou em sites especializados na venda de livros.
Conexão Literatura: Como você analisa a questão da leitura no Brasil?
Bia Barros: Uma pesquisa recente do Ipec mostrou que o país perdeu quase 7 milhões de leitores desde 2019. Cerca de 53% das pessoas entrevistadas não leram nem um livro nos três meses anteriores ao estudo. Independente da classe social, o número de leitores caiu no país inteiro e temos agora praticamente só leitores de Bíblia. Essa queda tem a ver com a ausência das políticas de Estado voltadas ao Livro e a Leitura, a defasagem na Educação – a escola não é mais o lugar de estímulo à literatura – e as pessoas estão priorizando os gastos essenciais, de sobrevivência, aos que consideram supérfluos.
No entanto, apesar de todo esse cenário medonho, eu não acho que tudo está perdido. A produção literária está se pulverizando e encontrando outros nichos. Eu estive na comitiva de escritores que foi representado o Brasil na Feira Literária de Bogotá e foi muito bonito ver o que está sendo produzido de literatura indígena, quilombola, periférica, uma literatura muito mais diversa, com representantes de todas as etnias, cores e regiões do país. Isso é apenas um recorte? É provável. Mas, apesar de ver que há um imenso desafio para alcançar leitores, acho há um movimento muito interessante que está acontecendo e que não pode ser ignorado. O mercado literário está se reinventando, construindo outras formas de chegar ao leitor, como os clubes de assinaturas, os podcasts, os audiobooks e uma série de canais e clubes de leituras que estão movimentando o setor e trazendo uma relação muito mais próxima do escritor com quem lê, apagando as fronteiras.
Conexão Literatura: Existem novos projetos em pauta?
Bia Barros: Sim, um terceiro romance sendo escrito neste momento. E, recentemente, fui desafiada por dois amigos a escrever uma comédia. Eles comentaram que, apesar de ser muito brincalhona na vida pessoal, meus textos sempre tratam de temas muito pesados, densos. Confesso que isso me instigou. Apesar de ser cearense e ter a pressão de ser engraçada o tempo todo – e, talvez, por isso mesmo – a comédia me parece muito mais difícil de escrever. A comédia boa é sempre disruptiva e isso requer uma inteligência acima da média, na minha modesta opinião.
Perguntas rápidas:
Um livro: Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa
Um ator ou atriz: Anthony Hopkins
Um filme: Ainda estou aqui
Um hobby: Cinema
Um dia especial: o dia do lançamento dos meus livros
Conexão Literatura: Deseja encerrar com mais algum comentário?
Bia Barros: Os cearenses vão dominar o mundo! 😊
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Paulista, escritor e ativista cultural, casado com a publicitária Elenir Alves e pai de dois meninos. Editor da Revista Conexão Literatura (https://www.revistaconexaoliteratura.com.br) e colunista da Revista Projeto AutoEstima (http://www.revistaprojetoautoestima.com.br). Chanceler na Academia Brasileira de Escritores (Abresc). Associado da CBL (Câmara Brasileira do Livro). Participou em mais de 100 livros, tendo contos publicados no Brasil, México, China, Portugal e França. Publicou ao lado de Pedro Bandeira no livro “Nouvelles du Brésil” (França), com xilogravuras de José Costa Leite. Organizador do livro “Possessão Alienígena” (Editora Devir) e “Time Out – Os Viajantes do Tempo” (Editora Estronho). Fã n° 1 de Edgar Allan Poe, adora pizza, séries televisivas e HQs. Autor dos romances “Jornal em São Camilo da Maré” e “O Clube de Leitura de Edgar Allan Poe”. Entre a organização de suas antologias, estão os títulos “O Legado de Edgar Allan Poe”, “Histórias Para Ler e Morrer de Medo”, “Contos e Poemas Assombrosos” e outras. Escreveu a introdução do livro “Bloody Mary – Lendas Inglesas” (Ed. Dark Books). Contato: ademirpascale@gmail.com