Lia Diskin – Foto divulgação

Formada em Jornalismo com especialização em Crítica Literária,
cofundadora da Associação Palas Athena e criadora de programas culturais e socioeducativos.
Coordenadora do Comitê para a Década da Cultura de Paz –uma parceria UNESCO-Palas
Athena. Conferencista no Brasil e no exterior.  Autora de: Cultura
de Paz – Redes de Convivência
(SENAC), Não-violência
Doméstica
(Instituto Avon) e Vamos Ubuntar – um convite para cultivar a
paz (
UNESCO), entre outros. Autora de Cultura
de Paz – da reflexão à ação
(UNESCO) e coautora de Paz, como se faz? (UNESCO). Recebeu, na celebração de 60 anos da
UNESCO, o Diploma de Reconhecimento pela sua contribuição na área de Direitos
Humanos e Cultura de Paz. Recebeu em 2010 os prêmios Trip Transformadores e o
de difusão de valores gandhianos fora da Índia da Jamnalal Bajaj
Foundation. Em 2020 foi agraciada com o Padma Shri Award, concedido pelo Governo da
Índia.
 

Você é cofundadora da Associação
Palas Athena. O que motivou a constituir essa associação? Fale-nos sobre seu
trabalho e também sobre o trabalho da editora.

Nasci em Buenos Aires em 1950, e desde muito jovem manifestei interesse por
filosofia, antropologia, literatura, diversidade das culturas. Esse interesse
foi despertado por duas experiências cuja memória guardo com clareza apesar do
tempo transcorrido.

Morava naquele tempo perto da Universidad del Salvador, onde o Pe. Ismael
Quiles fundou a primeira Escola de Estudos Orientais da Argentina, e dirigiu o
Instituto Latino-Americano de Investigações Comparadas Oriente e Ocidente.
Frequentemente ministrava palestras aberta às quais eu assistia.
Um dia quis visitá-lo no seu escritório para dilucidar [= elucidar, esclarecer]
algumas dúvidas que me inquietavam. Bati na porta, mas ninguém respondeu.
Insisti e então percebi que a porta estava entreaberta; devagar entrei na sala
e chamei pelo Padre. Ele estava sentado sobre uma poltrona na tradicional
postura de lótus do yoga com as pernas cruzadas.


Naqueles tempos os sacerdotes usavam batina preta até os pés, e vê-lo de olhos
fechados em evidente atitude de meditação foi como presenciar um diálogo
inter-religioso.

A outra experiência juvenil foi ao ouvir uma conferência de Jorge Luis Borges
que tratava sobre as infinitas possibilidades da linguagem para criar
argumentos e contra-argumentos. Ilustrou sua fala relatando os paradoxos de
Zenão de Eleia e, em especial, o de Aquiles e a tartaruga. Na mitologia grega
Aquiles é um herói admirado pela sua coragem e também pela velocidade com que
corria. Zenão cria um enredo onde Aquiles e uma tartaruga vão disputar uma
corrida, mas inclui uma pequena variante: vai dar 1 metro de vantagem para a
tartaruga na linha de partida.

Bem, como todos sabem, aí começa a construção do paradoxo, pois Zenão diz que
Aquiles nunca vai alcançar a tartaruga visto que quando Aquiles corra esse
metro a tartaruga já terá feito mais 10 centímetros e assim infinitamente.

Jorge Luis Borges descrevia essa cena com tamanha vivacidade que, em um momento
fiquei assustada com meu próprio pensamento: “como este homem que é cego está
fazendo com que eu veja?”.

A Associação Palas Athena é um espaço de reflexão e ação, isto é, oferecemos
cursos, palestras, grupos de estudo e, paralelamente, mantemos programas
socioassistenciais junto às Secretarias de Saúde, Educação, Assistência Social;
a Fundação Casa; o Judiciário, entre outros.
 

Como coordenadora do Comitê Paulista
para a Década de Cultura de Paz (um programa da UNESCO), como analisa a questão
da violência nas escolas? Falta uma cultura de paz por parte das pessoas
(alunos, comunidade escolar etc.)?

A escola é o primeiro espaço de socialização das crianças. Lá encontram a
diversidade que caracteriza uma cidade, um país, um continente. Lá também
encontram adultos que apesar de não ser os pais ou familiares, elas têm de
obedecer – há normas, regras, procedimentos, responsabilidades até então
desconhecidos. É um espaço ao qual precisam se adaptar.

Mas a escola também é um espaço de ressonância do que acontece na sociedade em
que está inserida. Quando as desigualdades são gigantescas e promovem uma
cultura de exclusão a diversidade é percebida como uma ameaça, um perigo
potencial frente ao qual é melhor manter distância.
Sem dúvida não fomos educados para conviver com o diferente, ignoramos que é
justamente ele que pode ampliar e enriquecer nossa percepção de realidade.
Qualquer ecossistema é tanto mais sustentável e promissor quanto maior a
diversidade que conseguir acolher.
Sabemos que os 3 primeiros anos de vida são fundamentais para uma criança criar
vínculos afetivos saudáveis. Se o meio familiar for disfuncional, de abandono,
pouco calor humano e cuidado amoroso, a desconfiança vai ser um traço da
personalidade futura dessa criança.
Hoje dispomos de muitos estudos, pesquisas e experiências no cenário escolar
que podem nos orientar para oferecer balizas comportamentais que se traduzam em
ambientes seguros, de legitimação e dignidade para todos. Porém é preciso
compreender que a escola está dentro de um contexto social, e que este
manifesta violências estruturais preocupantes; para dar apenas dois exemplos: a
indústria armamentista é a mais lucrativa em todo o mundo, e os conteúdos dos
videogames, filmes, seriados e desenhos animados exaltam a força, a retaliação
e a violência redentora.
No ano passado foi publicada a 4ª edição do livro Paz, como se faz? Semeando
Cultura de Paz nas escolas
, parceria UNESCO/Palas Athena, que escrevi com a
Dra. Laura Gorresio Roizman. O livro está sendo distribuído gratuitamente em
escolas públicas, e também está disponível para fazer download nos sites da
UNESCO e da Palas Athena, sem custo algum. Ali se encontram, além dos suportes
conceituais sobre uma cultura voltada à convivência, uma série de atividades
interativas e criativas que visam desenvolver a cooperação, solidariedade e
empatia como antídotos das injustiças e beligerâncias.

No dia 31 de maio, você ministrará na
Palas Athena – e online – o curso “O encontro, em diálogo possível – Martin
Buber, David Bohm e Marshall Rosenberg”. Gostaríamos que comentasse um pouco a
respeito.

Os três autores que escolhi trabalhar neste curso dedicaram-se ao Diálogo; a
especificar seus contornos e diferenciá-los daquilo que chamamos “debate”,
“discussão”, cuja intenção é convencer o outro, defender as próprias ideias,
desqualificar posições que não estejam alinhadas com as que expressa quem está
com a palavra.

Os preconceitos perpetuam-se por falta de escuta qualificada, de diálogo e
abertura a novos olhares e visões de realidade. Hoje, em tempos de redes
sociais, o que presenciamos são monólogos, afirmações que se apoiam em opiniões
ou crendices que não resistem à reflexão, a uma observação a partir de
diferentes antecedentes e contextos sociais ou existenciais.

Cultivar a escuta atenta e respeitosa permite avaliar e ponderar sobre o que se
ouve para compreender o que verdadeiramente está sendo dito – isso evita uma
infinidade de mal-entendidos.

Como a Justiça Restaurativa pode
contribuir para diminuir a violência, de maneira geral?


Um dos pioneiros em sistematizar as experiências em Justiça Restaurativa nos
Estados Unidos, cujas manifestações iniciais encontramos nos anos 70 do século
passado, mas cujas raízes estão no legado dos povos nativos da América do Norte
e Nova Zelândia, é o Prof. Howard Zehr, autor dos livros de referência
internacional nessa área.

Em Trocando as lentes, publicado pela Palas Athena Editora, o Prof.
Zehr começa sinalizando o que a Justiça Restaurativa não é; entre as ideias
apresentadas destacamos:

·        A Justiça Restaurativa não tem como
objeto principal o perdão ou a reconciliação.

·        A Justiça Restaurativa não é
mediação.

·        A Justiça Restaurativa não é uma
panaceia nem necessariamente um substituto para o processo penal.

·        A Justiça Restaurativa não tem por
objetivo principal reduzir a reincidência ou as ofensas em série.

Então, o que é e
para que serve a Justiça Restaurativa?

Ela tem 3 pilares: 1) o dano cometido seja para pessoas ou comunidades; 2)
esses danos resultam em  obrigação e/ou responsabilização por parte do
ofensor; e 3) engajamento de todas as partes afetadas pelo crime – vítimas,
ofensores e membros da comunidade – para tomarem conhecimento do sofrimento
provocado e chegar a um consenso sobre como reparar, como corrigir a situação.
O fato de o ofensor encontrar-se com a vítima, saber dela e por ela o mal que provocou
é transformador. Há milhares de registros, relatos e depoimentos no mundo todo
que confirmam o poder curador da palavra, do diálogo e da responsabilização.
 

A Monja Coen disse que, para ela, só
existe este caminho para uma cultura de paz: o autoconhecimento. Você concorda
que o conhecimento de si mesmo pode levar a pessoa a praticar a cultura de paz
e, por conseguinte, à não violência?

Se tivermos em consideração que todos sabemos o que é a dor, o desprezo, a
traição, a humilhação, a exclusão; também o que é a confiança, o respeito, a
afetividade sincera, a solidariedade, não há como ignorar o que cada um de nós
provoca nos outros.

A Regra de Ouro que, nas diferentes tradições espirituais repete: “Não faça aos
outros aquilo que feito a você causaria dor”; ou na forma positiva: “Aquilo que
deseja que os outros façam a você, faça também aos outros”, é um indicador
claro sobre a necessidade de autoconhecimento, que não é alienação da realidade
circundante, mas familiaridade com os estados da nossa própria mente, com as
possibilidades de autoeducação e governabilidade interna, com o poder da
liberdade e da compaixão.

Uma pergunta que não fizemos e que
gostaria de responder.

Gostaria
de deixar para todos nós uma pergunta que Yuval Harari coloca no seu
livro Uma breve história da humanidade – Sapiens: “Nós dominamos o
meio à nossa volta, aumentamos a produção de alimentos, construímos cidades,
fundamos impérios e criamos grandes redes de comércio.  Mas, diminuímos a
quantidade de sofrimento no mundo?”.
 

Segue abaixo o
programa completo do curso O encontro – em diálogo possível.

 

CIDA SIMKA

É licenciada em Letras pelas
Faculdades Integradas de Ribeirão Pires (FIRP). Autora, dentre outros, dos
livros O enigma da velha casa (Editora Uirapuru, 2016), Prática de escrita:
atividades para pensar e escrever (Wak Editora, 2019), O enigma da biblioteca
(Editora Verlidelas, 2020), Horror na biblioteca (Editora Verlidelas, 2021), O
quarto número 2 (Editora Uirapuru, 2021) e Exercícios de bondade (Editora
Ciência Moderna, 2023). Colunista da revista Conexão Literatura. 

SÉRGIO SIMKA

É professor universitário desde
1999. Autor de mais de seis dezenas de livros publicados nas áreas de
gramática, literatura, produção textual, literatura infantil e infantojuvenil.
Idealizou, com Cida Simka, a série Mistério, publicada pela editora Uirapuru.
Colunista da revista Conexão Literatura. Seu mais recente trabalho acadêmico se
intitula Pedagogia do encantamento: por um ensino eficaz de escrita (Editora
Mercado de Letras, 2020) e seu mais novo livro se denomina Exercícios de
bondade (Editora Ciência Moderna, 2023). 

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