Sobre mim   Nasci no Rio de Janeiro em dezembro de 1950 e passei a infância e juventude na Tijuca, bairro conservador de classe média que é pano de fundo de várias de minhas narrativas.  Formei-me em Letras, Português-Literaturas, na UFRJ e cursei o Mestrado em estudos literários na PUC-RJ e Doutorado em Letras Vernáculas-Literatura Brasileira na UFRJ, com dissertação e tese sobre diferentes aspectos da trajetória intelectual e da obra de Nelson Rodrigues. Trabalhei como professor de ensino médio, principalmente na rede pública, e no ensino superior público e privado (PUC-RJ, SUAM, UNI-Rio, e, desde 1994, na UERJ). Fui pesquisador em teatro no INACEN, IBAC, depois FUNARTE. Fiz cursos e estágios de pesquisa e ensino na França (Nantes e Rennes) e nos EUA (Carolina do Norte). Tenho um netinho, o João, que fez sete anos em janeiro de 2024. Com ele aprendo muitas coisas e continuo a inventar histórias, como as que publiquei pela editora Caravana, fruto de sua curiosidade diante daquele castelinho na esquina da Rua Garibaldi, na Tijuca, perto do qual passei minha infância. Aposentei-me em 2017 como Professor-Associado, mas continuo vinculado à pós-graduação em Estudos Literários do Instituto de Letras da UERJ. Publiquei vários trabalhos acadêmicos sobre literatura e teatro e os livros individuais: Nelson Rodrigues: o freudismo e o carnaval nos teatros modernos (Ed.7Letras); Nelson Rodrigues e a obs-cena contemporânea (EdUERJ); A Musa Carrancuda: teatro e poder no Estado Novo (Ed. FGV). Atualmente desenvolvo projeto de pesquisa sobre a literatura brasileira e o patriarcalismo apoiado pelo CNPQ, dedico-me a escrever ficção e às artes visuais, xilogravura e pintura. No início de 2023, a Editora Patuá publicou meu livro de contos Peças Íntimas: Memórias em várias vozes e aeditora Caravanao livro infantojuvenil Os Mistérios do Castelo daquela Rua.  
Victor Hugo Adler Pereira

Os livros publicados

O livro Os Mistérios do Castelo daquela Rua foi elaborado a partir de histórias que contei para meu neto durante o período de isolamento social exigido pela pandemia.  Um dia, passeando de carro, a caminho do Alto da Boa Vista, passamos na esquina da Rua Garibaldi. Comentei que naquela rua tinha vivido até os onze anos de idade. Meu neto perguntou o que era o casarão imponente e bonito como um castelo naquela esquina. A partir daquele momento comecei a inventar histórias baseadas nas fantasias infantis sobre aquela construção abandonada cercada por vegetação alta.  Comentei que para as crianças daquela rua todos os episódios que envolviam personagens da literatura infantil viveram ali: a bruxa que enfeitiçou Branca de Neve; a Bela Adormecida, que achou a roca envenenada num dos quartos lá do alto; Rapunzel que jogava suas tranças de uma daquelas varandas. As histórias que passei a contar para ele, a partir daquele momento, envolviam sempre, a seu pedido, alguns personagens centrais: uma menina e dois meninos, colegas de escola, e a Bruxa da Tijuca, seus corvos, o Pipoqueiro Feiticeiro e o Coelho Mágico, que se tornou aliado das crianças. Explorei as sugestões dos espaços em torno do castelo: o rio Maracanã que passa ao lado dele, um campinho de terra à margem deste, que permitia a vista para o pátio externo do prédio misterioso.  O fato de meu neto, João, cobrar sempre histórias novas com a presença desses personagens e referências ao espaço das primeiras narrativas, conferia uma unidade ao conjunto. Os enredos giravam em torno de desafios à curiosidade ou à ousadia das crianças que as levava a investigar a vida naquele casarão misterioso e ao terreno sombrio cercado por um muro e grades. Sobretudo a ação se desenvolvia pela necessidade ou desejo de enfrentar o antagonismo da Bruxa da Tijuca. De início, esse seria o título do livro, mas avaliei que poderiam surgir dificuldades na identificação de leitores e leitoras de outras cidades e até mesmo de outros bairros do Rio de Janeiro.  Por isso, mudei o nome e acrescentei a observação, no início da narrativa, de que quase sempre há nas cidades casarões ou pretensos castelos que parecem misteriosos para as crianças e se associam às histórias que costumam ler ou ouvir. Vale observar que muitas pessoas adultas que vivem ou viveram na Tijuca, ao saber do tema do livro, comentaram que nutriam na infância as mesmas fantasias quanto ao casarão na esquina da Rua Garibaldi, antes de sua reocupação. O chamado castelinho, construído no início do século XX em estilo eclético, ficou muitos anos abandonado, mas foi adquirido e restaurado pela administração municipal, passou a sediar o Centro de Música Carioca Artur da Távola, desde 2007.

O livro Os Mistérios do Castelo daquela Rua foi publicado em 2023 pela Editora Caravana, mas o editor elaborou uma nova edição, com ilustrações realizadas por mim, que será lançada, primeiro em castelhano, na livraria Caboré em Buenos Aires.

Em 2023 publiquei também o livro de contos intitulado Peças Íntimas: memórias em várias vozes, pela editora Patuá. Os contos que escolhi para integrar o volume foram escritos durante alguns anos e continuamente reelaborados. Baseiam-se em diferentes fontes; entre elas, histórias que circulavam, de geração em geração, numa família de tradição militar, envolvida diretamente em conflitos políticos e afetada pela crise de valores comportamentais no século XX. A vida cotidiana da Tijuca, sua religiosidade e conservadorismo se destacam em vários contos. As personagens de generais, jovens aspirantes a oficiais do exército brasileiro, civis que defendem o ideário conservador, afloram, junto a de mulheres e homens que se submetem ou divergem e resistem diante da vigilância e de medidas repressivas. As personagens principalmente através do discurso indireto livre encenam o diálogo e o acirrado conflito de valores nos anos 60 e 70. Destacam-se, nessa galeria, as figuras da mãe de família, do psiquiatra conservador, dos padres envolvidos em situações eróticas, inclusive de pedofilia, dos jovens que descobrem a sexualidade fora dos esquadros da heteronormatividade. Situações e conflitos que recuperaram sua atualidade nos últimos anos.

O título, por um lado, destaca a incorporação de recursos teatrais nas cenas que integram os textos; por outro, a frequente adoção de procedimentos estéticos do hiper-realismo, convidando os leitores e leitoras a compartilharem experiências traumáticas e desafios dos limites em que se envolvem as personagens. Uma cronologia de construção subjetiva se estabelece sem procurar caracterizar a biografia de um personagem específico. Os relatos se sucedem enfocando desde experiências infantis e adolescentes no meio familiar e escolar, à tomada de consciência das convenções de gênero, a relatos de relações homoafetivas adolescentes e adultas, reflexões sobre a velhice e a decadência da autoridade dos patriarcas.

Portanto, em ambos os livros publicados em 2023, destaca-se a evocação da infância e da adolescência, dos espaços físicos e culturais do bairro e da cidade em que vivi até me tornar adulto. A necessidade de visitar, misturando memória e ficção, essas marcações de identidade, ao passar dos 70 anos, leva-me a reconhecer que ela esteve presente, de modo recorrente, em minha vida acadêmica.  Manifestava-se, desde o Mestrado, meu interesse pela cultura dos anos 30 e 40, a influência no Brasil do regime Vargas, a tentativa de analisar criticamente as narrativas de minha mãe e de meu pai sobre as repercussões em suas vidas das transformações do país naquela época histórica. Num movimento análogo, o desejo de compreender melhor o contexto de minha formação levou-me a estudar a obra de Nelson Rodrigues, o teatro e as crônicas-conto, frequentemente ambientadas nos bairros de classe média da Zona Norte do Rio de Janeiro. É notável nesse contexto a presença da cultura que, dos morros da Tijuca, se impunha ao conjunto da cidade e do país. As favelas do bairro foram berço de grandes escolas de samba, que vez por outra se apresentavam no “asfalto”, afirmando a força da cultura popular junto à população de classe média. E talvez não seja coincidência que a esse outro lado da cultura carioca esteja ligado o imponente castelinho da Rua Garibaldi. Considere-se que, em frente a ele, do outro lado da rua, existia o famoso botequim de Dona Maria, local de reunião de sambistas e compositores, como Moacyr Luz e Aldir Blanc. Talvez devido a essas circunstâncias, as autoridades municipais tenham decidido adquirir o casarão, restaurá-lo e instalar nele o importante e dinâmico Centro da Música Carioca, homenageando Artur da Távola, com auditório com programação intensa e salas de cursos e reuniões. E os jardins murados, com a vegetação cerrada, durante muitas décadas cercados de mistério, foram transformados em amplo espaço de lazer para visitantes e moradores do bairro. 

Sobre as questões de leitura no país

Embora haja especificidades regionais, algumas das dificuldades para ampliar o público-leitor afetam tanto o Brasil como a comunidade internacional. A interferência da expansão da mídia no tempo dedicado à leitura já vinha sendo observada, há décadas, com a democratização do acesso à televisão e ao cinema. Muitos dos problemas que se atribuem ao acesso das crianças e dos jovens à internet e às redes sociais já vinham sendo relacionados à atração que os programas televisivos exerciam, atropelando com seus recursos visuais os limites da escrita impressa do livro e do jornal. Posteriormente, no Brasil, as telenovelas passaram a ser apontadas como responsáveis pelo declínio da leitura de obras de ficção, sem se levar em conta seu poder de divulgação de obras literárias e teatrais, como as de Jorge Amado e Dias Gomes. Na atualidade, diante da justificável preocupação com a dependência do celular e da mídia eletrônica deve-se levar em conta a contracorrente representada pela variedade de gêneros textuais que se desenvolve na internet – inclusive pela difusão de e-books que abordam diferentes campos de conhecimento, além de prosa e poesia, com distribuição on-line muito ágil e preços muito abaixo dos impressos.  No entanto, uma questão que afeta vários países, europeus inclusive, é a dificuldade de o ensino escolar contribuir para que os estudantes consigam ultrapassar o analfabetismo funcional. No caso do Brasil, muitas pesquisas indicam que grande parte da rede de ensino prepara crianças e jovens apenas para decodificar mensagens com função pragmática imediata, sem concretizar o letramento. Segundo vêm apontando educadores e pensadores há muitas décadas, a manutenção de uma ampla rede de ensino que forma cidadãos dentro desses limites corresponde a uma perspectiva política intimamente relacionada a um projeto de nação excludente das classes populares. Com isso, criaram-se duas modalidades de escola no país. Uma delas, tanto faz se pública ou privada, que procura realizar uma formação eficiente de crianças e jovens predominantemente das classes mais abastadas para que garantam a reprodução social de sua condição. Essa faixa da juventude é preparada para fazer parte da classe dirigente ou servir a ela em funções especializadas. Uma outra modalidade de escola, cuja clientela é majoritariamente das classes populares, sofre de diversas carências: espaço físico inadequado para abrigar estudantes e para atividades educativas (ausência ou pobreza de laboratórios e bibliotecas), professores com salários muito baixos. Além disso, essas escolas nas periferias urbanas estão vulneráveis a conflitos entre criminosos e milicianos locais e uma polícia que comete abusos contra população local e arrisca a vida de crianças e professores nas suas ações repressivas. Devido a estas, suspensões de aulas são frequentes, assim como a morte de crianças a caminho da escola. Os problemas da leitura no país, no que concerne à formação educacional, refletem esses contrastes que são inerentes à permanência das desigualdades sociais e à persistência de um projeto de reprodução social desses contrastes, como há décadas apontava Darcy Ribeiro. Há reações e resistências a esse projeto retrógrado na área da educação que tomam diferentes formas através do tempo, como: a criação de escolas públicas de tempo integral, os programas de alimentação escolar, a expansão de uma rede de escolas federais que, por exemplo, quanto ao ensino médio rompem com o engessamento das escolas mantidas nos velhos esquemas nas redes estaduais.  

Surgem também iniciativas pontuais ou locais, como também programas federais de estímulo à leitura. Alguns especialistas apontam para limites dessas iniciativas. No caso das feiras de livros, acusam o estímulo a uma relação fática, de consumo como uma mercadoria qualquer do objeto livro, transformando-o e à leitura numa espécie de fetiche, considerando a aproximação com estes como um remédio imediato para questões muito mais complexas. Os programas que pressupõem a aproximação crítica do livro, relacionando-o a uma perspectiva mais ampla de “leitura do mundo” (Paulo Freire) procura atacar mais concretamente a questão do analfabetismo funcional. O leitor é encarado, desse modo, como dotado da capacidade de se situar diante das mensagens com que entra em contato (seja num livro, num programa de televisão, num filme) passa a se relacionar como sujeito e ser estimulado a relacioná-las com o que concebe como mundo – palpável, concreto e no plano espiritual – e inclusive ampliar seus horizontes nessa concepção do contexto em que se insere. Coordenei durante muitos anos um “projeto de estimulo à leitura” na UERJ, o LerUERJ, que procurava se nortear por essa perspectiva e propiciar que estudantes de graduação, em Letras ou em outras áreas das Ciências Humanas principalmente, participassem da elaboração e ações voltadas para  diferentes faixas etárias e setores da sociedade, com essa orientação. Acredito que a difusão entre educadores de várias áreas dessa perspectiva mais ampla da leitura e da educação poderá propiciar mudanças nas atitudes que se instalaram nas escolas – em especial, nessa rede que foi relegada pelo Estado brasileiro à função de formar a mão de obra subalterna – e contribuir para romper com as práticas de ensino que as conservam como locais desinteressantes para o alunado, que intui que naquele espaço domina um projeto de subalternização. As práticas pedagógicas conservadoras relacionam-se diretamente à manutenção dos altos índices de analfabetismo funcional e ao prejuízo do desenvolvimento da perspectiva crítica dos educandos.

Certamente o preço dos livros é mais um fator que dificulta a expansão do público leitor no Brasil. A mercantilização da cultura afetou não somente o livro, mas também o teatro e o cinema. Um aspecto desse processo é o acesso mais imediato aos livros e aos filmes produzidos para atingir grandes massas, os chamados best-sellers; mas, como situei anteriormente, a internet pode ser um meio de driblar esse esquema dos grandes produtores. Uma das contradições nesse sentido é que os sites de venda de livros ou de difusão de livros on-line muitas vezes formam grandes monopólios que sufocam pequenas editoras. Tornam-se complexas as lutas nesse campo da mercantilização, no exemplo acima, como também na atitude diante das megafeiras ou eventos do livro, sustentados por grandes conglomerados editoriais, promovendo megastars do mundo literário – o que, inclusive, fomenta distorções na concepção do papel da literatura e do escritor na sociedade.

Voltamos, sob outro ângulo, a colocar questões que se relacionam aos problemas citados acima: conseguir ampliar o público leitor e as vendas de livro no país, registrar progressos estatísticos nesse sentido, seriam em si uma meta desejável para a construção de um país melhor?  Em que medida qualquer tipo de leitura será positivo para o futuro do país, a emancipação de setores subalternizados, e até mesmo melhor inserção na realidade dos cidadãos do país? A que projetos de sociedade pode servir, a expansão da leitura e a publicação de livros de autoajuda, de obras de difusão de perspectivas hostis à ciência e à análise crítica da vida pessoal ou coletiva?  Acredito que estas sejam questões que sempre devem estar presentes quando se discute o chamado problema da leitura no país. Ou seja, não priorizar a quantidade de leitura e de leitores, mas a qualidade e pluralidade de relações possíveis com o livro e a leitura, na perspectiva de estimular e desenvolver o letramento em faixas mais amplas da população.

Ensino superior pós-pandemia

Atualmente não atuo mais nos cursos de graduação, mas tenho mantido contato com a universidade, com os colegas e estudantes. Além disso, acompanho algumas sondagens e pesquisas sobre os impactos da pandemia no ensino superior. Inegavelmente houve uma alta taxa de evasão de estudantes nos primeiros meses da pandemia, as medidas de isolamento social e a implantação do ensino não presencial tiveram impactos negativos na universidade. Os estudantes enfrentaram problemas financeiros pela perda de empregos formais de membros da família ou deles próprios. Com isso, houve uma evasão significativa e, segundo pesquisa do Conselho de Reitores de Universidades Brasileiras, divulgada em 2023 chegou a dois milhões e trezentos mil a cifra de estudantes que abandonaram o ensino superior em 2021 (matéria divulgada na Folha de São Paulo no dia 02/06/2023). Também segundo essa pesquisa, as taxas de evasão contrastaram grandemente, entre o ensino superior público e privado: no primeiro, depois de altas taxas iniciais, houve uma recuperação e, no final de 2021, foi quatro vezes menor que a das instituições privadas. Uma das causas para isso é a dificuldade dos estudantes de manter em dia os pagamentos nos cursos pagos. A matéria da imprensa, divulgando esses dados da pesquisa, chama a atenção para a abertura de vagas nessas instituições, que lhes garante lucros nos primeiros períodos.  Como a principal preocupação de seus administradores é diminuir despesas, fica prejudicada a qualidade do ensino, principalmente pelas constantes demissões de docentes e funcionários. Por outro lado, nas instituições públicas de ensino superior foram implementadas políticas de apoio aos estudantes, procurando evitar o abandono dos cursos. Relevem-se as diferenças de perspectiva que norteiam o ensino público e o privado, especialmente diante da expansão de redes de empresas de ensino superior que evidenciam nas suas práticas a predominância dos interesses financeiros, fenômeno que ocorre também nos outros níveis de ensino. 

Alguns outros fenômenos que se apresentam desde muitas décadas como motivo para a evasão de estudantes, entre eles a estrutura dos cursos, segmentados em especialidades em áreas de conhecimento relativamente estanques, dificultando relações interdisciplinares. Estudantes que não têm a devida noção do que é a universidade e, muito menos, das atividades profissionais numa determinada área, são levados a realizar escolhas definitivas que podem resultar em decepções, abandono de cursos, ou troca entre eles. É necessário procurar soluções para esse problema que atendam às novas exigências do mercado de trabalho e dos campos de pesquisa que, cada vez mais, promovem diálogos transdisciplinares. Há algum tempo, encontro argumentos que fundamentam a criação de uma espécie de “colégio universitário”, como propôs um ex-reitor da UERJ, em conversa em que externava sua preocupação com as altas taxas de evasão e a troca de cursos nas universidades públicas, apesar da seleção rigorosa do vestibular exigir grande aplicação para o ingresso.  Uma versão dessa proposta poderia ser um estágio com disciplinas de áreas afins à escolha principal no vestibular ou alguns procedimentos que ofereçam a possibilidade de os calouros transitarem para diferentes cursos na continuidade dos cursos. Esse tipo de proposta, certamente, exigiria uma reestruturação dos cursos superiores, uma tarefa difícil que implicaria, inclusive, grande mobilização e apoio dos docentes, abertura para novas perspectivas, flexibilizando sua inserção disciplinar.

Outro problema relacionado ao que acabo de abordar que vejo se perpetuar ou até se agravar é a estruturação dos currículos. Houve, nos últimos anos, a implantação de uma grande modificação nas áreas ligadas à formação de professores que até nossos dias também incluíam a formação de pesquisadores, por exemplo, na área de Letras ou de Ciências Humanas e Sociais. Foi estabelecido um encaminhamento de vários cursos, desde suas primeiras disciplinas, para a formação de professores – por exemplo, o estudo de Literatura voltado para as possibilidades de suas aplicações à sala de aula, pressupondo a futura atividade docente. Considero que essa é, mais uma vez, uma medida discutível, pois pode representar uma perspectiva do conhecimento com uma aplicabilidade prática um tanto imediatista ou pragmática, sem atentar para o que as disciplinas podem contribuir para a formação mais ampla e interdisciplinar de profissionais e cidadãos com curso superior. Uma vez que essas orientações emanadas do Ministério da Educação vêm sendo implantadas nos últimos anos, acredito que dificilmente será possível dar continuidade ao debate crítico sobre elas que vinha ocorrendo em algumas instituições. 

Um saldo positivo no ensino superior pós-pandemia foi a consolidação da política de cotas estudantis, dando continuidade a seu aperfeiçoamento. Vale observar que essa política tem modificado o perfil dos estudantes de ensino superior com ganhos positivos pela convivência no campus universitário de cidadãos e cidadãs de várias origens sociais e o empenho em colaborar para o combate ao racismo estrutural no país.

Além disso, a necessidade de continuar prosseguindo com o funcionamento da universidade que forçou a adaptação ao ensino não presencial colocou um desafio, nem sempre muito bem-sucedido. Mas, mesmo tendo sido minimizado com a volta de uma certa normalidade nas condições de saúde, abriu novas possibilidades naquilo que se revelou evidentemente positivo, por exemplo:  passou a haver maior flexibilidade para a realização de bancas de exame não presenciais, o que enseja a participação de docentes e pesquisadores de instituições afastadas nas longas distâncias de nosso país-continente. Essas trocas e diálogos em simpósios, seminários e debates tornaram-se corriqueiras, com vários ganhos a serem registrados. Também apontou para possibilidade de regimes híbridos semipresenciais na organização dos cursos, em especial na pós-graduação, em que há estudantes de localidades distantes do campus universitário que escolhem um programa pelas possibilidades particulares de desenvolver sua investigação nele.

 Sobre algum item que sugiro acrescentar: Meu débito com a obra de escritoras e escritores vivos e mortos e agradecimentos

Quem se aventura a escrever ficção dialoga com o legado de quem já se aventurou nessa viagem anteriormente. Entre os escritores e as escritoras que reconheço terem influência nas concepções do que seja a literatura e no modo com que venho elaborando meus textos ficcionais, privilegio os seguintes: Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Rubem Fonseca, Valter Hugo Mãe e Nelson Rodrigues – este, principalmente pela originalidade de suas crônicas-conto. No âmbito internacional, não dá para esquecer a empolgação que me motivou a ler calhamaços como os romances de Tolstói, Dostoievski e Balzac. Acrescentem-se aos brasileiros duas figuras cujas obras não têm merecido a devida atenção ou difusão, Sônia Coutinho e Samuel Rawet – pelo modo com que contribuíram para ampliar as possibilidades estéticas da arte narrativa, em especial no gênero conto.  

Merece um comentário especial o caminho que me levou a me dedicar, nos últimos anos, ao estudo de um autor além desses. Um curso de pós-graduação ministrado pelo Prof. Silviano Santiago, há mais de quarenta anos, provocou um interesse duradouro pela obra de José Lins do Rêgo, incialmente pelas questões que levanta sobre o patriarcado rural e urbano brasileiro. A continuidade da leitura de suas obras relacionava-se com o exercício do ensino de literatura brasileira. Mais tarde, nos primeiros anos do século XX, passou a ser motivada pelo desejo de cotejá-la com a de Jorge Amado e a de Graciliano Ramos, para estabelecer paralelos com a literatura que passou a enfocar a exclusão social nos últimos decênios no Brasil. Essas novas leituras foram ampliando o interesse por obras de Lins do Rêgo menos conhecidas e citadas, revelando uma variedade de temas e questões surpreendentes pela sua atualidade, como o racismo estrutural e os mecanismos psicossociais envolvidos no feminicídio. A maioria dos estudiosos de literatura, em seus comentários, parece ignorar seus romances que fogem da ambientação no Nordeste do país e da problemática regional, como também o exercício estilístico que Lins do Rêgo praticou nas diferentes obras, refinando a polifonia e o emprego dos fluxos de consciência. Essas características de sua obra, que a aproximam de experiências de consagrados narradores da modernidade, como William Faulkner, e o fato de considerar que têm sido abordadas superficialmente levaram-me a elegê-la como objeto privilegiado de pesquisa e me empenhar para a publicação de um livro sobre o assunto. Acredito que o estudo dessa obra pode contribuir para enriquecer as discussões sobre a abordagem literária da pobreza e exclusão social, das questões raciais (incrível a atualidade de seu romance Moleque Ricardo de 1935!) e das relações de gênero, ainda profundamente marcadas pela ideologia patriarcal – que o autor analisou em várias angulações com argúcia. 

Junto a essas referências, a obra dos chamados realistas russos do século XIX, Dostoiévski e Tolstói principalmente, e do imaginativo e arguto Balzac, me oferece sempre uma recepção renovada. A aposentadoria e a pandemia ofereceram a oportunidade de ler volumosos romances, obras-primas desses escritores.  Junta-se a elas a obra de Eça de Queirós. Quanto a esta, acho importante registrar o gesto ousado e profícuo de uma professora de ensino médio que indicou como leitura extraclasse O Primo Basílio. A leitura dessa obra acompanhada das aulas de literatura da professora Dora, no Colégio de Aplicação da UEG, Universidade do Estado da Guanabara (atual UERJ), levou-me alguns anos mais tarde à leitura de Mme. Bovary de Flaubert e provocou indagações sobre as possibilidades da literatura na investigação e no debate crítico do comportamento humano e da realidade histórico-social. Certamente devo aos desdobramentos e atualizações críticas desse impacto inicial, na adolescência, a decisão de cursar uma faculdade de Letras e repercussões em minhas escolhas de obras e concepções literárias até hoje. 

Agradeço o trabalho de vocês para provocar a discussão sobre a literatura, relacionando-a à cultura e à educação. Espero que tenha deixado claro no conjunto de meus comentários a importância que atribuo e o respeito a um trabalho como esse que vocês vêm desenvolvendo.

CIDA SIMKA

É licenciada em Letras pelas Faculdades Integradas de Ribeirão Pires (FIRP). Autora, dentre outros, dos livros O enigma da velha casa (Editora Uirapuru, 2016), Prática de escrita: atividades para pensar e escrever (Wak Editora, 2019), O enigma da biblioteca (Editora Verlidelas, 2020), Horror na biblioteca (Editora Verlidelas, 2021), O quarto número 2 (Editora Uirapuru, 2021), Exercícios de bondade (Editora Ciência Moderna, 2023), Horrores da escuridão (Opera Editorial, 2023), Dayana Luz e a aula de redação (Saíra Editorial, 2023) e Mariano (Opera Editorial, 2024). Colunista da revista Conexão Literatura.

SÉRGIO SIMKA

É professor universitário desde 1999. Autor de mais de seis dezenas de livros publicados nas áreas de gramática, literatura, produção textual, literatura infantil e infantojuvenil. Idealizou, com Cida Simka, a série Mistério, publicada pela editora Uirapuru. Colunista da revista Conexão Literatura. Seu mais recente trabalho acadêmico se intitula Pedagogia do encantamento: por um ensino eficaz de escrita (Editora Mercado de Letras, 2020) e os mais novos livros de sua autoria se denominam Exercícios de bondade (Editora Ciência Moderna, 2023), Horrores da escuridão (Opera Editorial, 2023), Dayana Luz e a aula de redação (Saíra Editorial, 2023) e Mariano (Opera Editorial, 2024). 

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