Algumas pessoas são viciadas em drogas. Outras em álcool. E algumas apenas adoram criticar os outros. Esse menino, entretanto, era viciado em rocambole com tubaína.

Diversas vezes ele gostava de acordar cedo para correr atrás do seu vício secreto, sobretudo quando estava de férias da escola pública que frequentava na periferia de Diadema. Sustentar a dependência não é fácil, por isso ele arregaçava as mangas – apesar de ter apenas oito anos de idade – pegava emprestado um carrinho no ferro velho próximo a sua casa e saía em busca de materiais recicláveis para vender. Garrafas, metais, papelão, tudo isso fazia seus olhos brilharem. Eventualmente ele pulava dentro de alguma caçamba de lixo em busca de mercadorias para aumentar seu caixa. Quando dava sorte, sabia que além dos seus quitutes talvez conseguisse também dinheiro para comprar algumas fichas no fliperama na rua de cima.

Numa dessas ocasiões ele se deparou, ao sair, com um cadáver na porta da sua casa, do outro lado da rua. Corpo de gente morta por morte matada, como diriam os antigos, caído do lado do esgoto a céu aberto que corria a partir da rua de terra na qual estava o casebre em que ele morava. O menino, que amava filmes de lobisomem, demônios e fantasmas, fez o sinal da cruz. Apesar de seu apelido ser “Terror”, ele era bem mais medroso do que queria deixar transparecer. Poucos sabiam que ele tinha até medo de escuro, aliás, tem até hoje. Apesar do susto, ele foi em busca dos seus trocados, afinal de contas o vício não podia esperar.

Às vezes ele se unia aos seus melhores amigos nessas empreitadas. Sérgio e Hélio eram primos, dois caras divertidos, parceiros, porém um pouco obstinados com violência e prática de pequenos delitos, como assaltos e furtos. O primeiro morreu assassinado com vinte e três tiros. O outro, para não morrer, fugiu para a Bahia. Anos depois encontrou Jesus, virou pastor e consertou a vida. Melhor assim.

Assim era a vida do menino. Apesar das adversidades, estudava muito e tirava boas notas, sobretudo em português, sua matéria favorita. E suas investidas como catador de lixo terminavam sempre no mesmo lugar: o bar da Branca. Obviamente ele não sabia o nome verdadeiro da mulher que cuidava do estabelecimento humilde, apenas o apelido, mas gostava muito dela que, sorridente, servia para ele numa das mesinhas de ferro enferrujado o rocambole Pullman acompanhado de uma garrafa de tubaína de 600 mililitros. Ele comia tudo sozinho, ávido, ciente de que aquilo talvez um dia lhe rendesse uma diabete, uma úlcera ou ambos.

Muitas vezes, depois de se deliciar, ele passava na loja ao lado, um pequeno bazar pertencente a uma portuguesa de sangue quente chamada Lourdes. O menino era assim mesmo, ficava por aí puxando conversa com os adultos. Essa mesma mulher ajudou a resgatá-lo quando um carro o atropelou enquanto ele ia para a escola sozinho, pois sua mãe, divorciada, trabalhava duro e ainda estudava à noite. O garoto era osso duro de roer, espatifou o para-brisa do carro, mas não quebrou um osso sequer. Deus realmente protege as crianças e os viciados. Nesse caso, ele tinha proteção dupla. Essa mesma dona Lourdes foi assassinada anos depois por um menino de apenas dez anos que decidira assaltar seu estabelecimento. Um único tiro certeiro ceifou a vida da pobre mulher.

Os anos passaram, o menino cresceu e, graças à sabedoria de sua mãe, logo cedo tomou o rumo do trabalho, igual aos seus irmãos. Trabalhou duro, ganhou dinheiro, mudou de vida. Lendo mais de mil livros, aprendeu a sonhar. Como escritor, ganhou o mundo. Até hoje conta com leveza sobre os tempos ásperos do passado. Só não faz ideia de onde encontrar um rocambole Pullman para comprar, ele sempre procura por um, onde quer que vá. Quem sabe um dia ele encontra.

Seus amigos o apelidaram de várias coisas. Alguns chamavam-no Terror, Gaúcho (apesar de ele ter nascido em São Paulo), Guido. Seus parentes o chamavam de Rodra e até hoje é assim. E, atualmente, a maioria das pessoas o chama apenas de Rodrigo de Oliveira, esse que vos fala.

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