O título deste artigo quase poderia ser uma fábula, mas não
é. O que os três animais citados no título acima têm em comum? Todos eles foram
utilizados, em algum momento, por um poeta para representar a consciência (ou
talvez o inconsciente, em alguns casos) do eu-lírico. Quase seria possível
dizer que eles escolheram aves para dar asas a uma consciência sufocada, mas
isso não pode ser dito, pois Augusto dos Anjos não escolheu uma ave, mas um
morcego, o único mamífero voador – ainda assim o poeta escolhera uma criatura
alada para representar a consciência do eu-lírico. O que faz com que estes
influentes poetas desejem representar algo tão intrínseco ao ser humano por
meio de criaturas capazes de voar? Vejamos aos poucos e, comparando cada um dos
exemplos, veremos o que eles trazem de semelhante e no que se diferem também.
Comecemos pelo exemplo mais clássico e provavelmente mais
famoso deles: O Corvo de Edgar Allan
Poe. Dentre as diversas interpretações que podem ser feitas do poema de Poe,
uma das mais freqüentes é a de que a sombria ave dos
maus tempos ancestrais utilizada pelo poeta é uma representação da lembrança do
eu-lírico referente à amante morta, a jovem Lenore. Ou seja, ela é uma
recordação que o poeta fazia de tudo para esquecer, para sufocar em seu
inconsciente, mas em uma noite fria a lembrança o invade novamente, em forma de
um pássaro sombrio que repete incessantemente as palavras de sua despedida com
Lenore.  
Isso pode ser
interpretado de outras formas, é claro, desde como uma narrativa sobrenatural,
em que o corvo é uma espécie de fantasma de Lenore ou enviado por ela, mas
também podemos ver a ave como a agonia já quase inconsciente do narrador
tomando forma, ganhando vida e se sobrepondo sobre o consciente dele,
sobrevoando sua existência e o afogando em suas sombras. Inclusive, um detalhe
que chama a atenção é o fato de o corvo pousar sobre o busto de Atenas, a deusa
da sabedoria, ou seja: a ave se coloca acima da sabedoria do eu-lírico, acima
de tudo o que ele entende seguindo razão e lógica e domina sua consciência o
revelando em palavras aquilo que ele deixava no abstrato subsolo de suas
memórias, fortalecendo uma assombração que ele tentava ocultar de si mesmo.

E
o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á… nunca mais!”
O Corvo (The Raven), Edgar Allan Poe, tradução de Fernando Pessoa
Poe utiliza um corvo
para dar um tom melancólico e sombrio ao poema, mas na Filosofia da composição,
ele não chega a citar porque resolver escolher um ser alado – fato este que
observaremos aqui, em comparação ao morcego e ao pássaro azul. Partindo agora
para O Morcego, de Augusto dos Anjos:
neste poema do jovem que revolucionou a poesia nacional, é dito claramente
porque o poeta escolhera um morcego para representar a consciência do eu-lírico
e exatamente que é isso mesmo que ele quer representar, o que vemos nos versos
finais do poema:
Que ventre
produziu tão feio parto?!
A consciência humana é este morcego! 
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra 
Imperceptivelmente em nosso quarto.”
O Morcego, Augusto
dos Anjos
Neste caso, o poeta se refere à consciência como algo que
ele deseja evitar, mas que à noite acaba por encontrá-lo, quando o mundo
consciente e inconsciente se misturam envoltos por uma atmosfera surreal de
sonho e trevas. A descrição de tal cena poderia muito bem se referir ao
narrador do Corvo, tentando fugir de suas memórias de Lenore e de sua terrível
maldição de viver sob tal sombra, não é mesmo? Mas a consciência humana tem
asas, e por mais que tentemos afogá-la, sucofá-la, uma hora quando estivermos perdidos
entre sonhos e realidade, ela dá um jeito de nos alcançar e de se sobrepor
sobre nós, por vezes nos levando à estados de loucura ou melancolia, como vemos
nos narradores dos dois poemas citados acima.
                Agora, e quando queremos
esconder de nós mesmos algo que, por algum motivo o outro, tememos que o mundo
não aceite, mas que faz parte de nós ainda assim? Quando não são trevas que
queremos ocultar, mas alguma espécie de luz que tememos que a sociedade
condene? Talvez isso venha à tona de uma forma mais delicada, mas sutil: em
forma de um pássaro azul, que podemos prender em uma gaiola (gaiola feita de
costelas humanas), mas deixá-lo livre quando nos sentimos confortáveis para
tal. Quando sentimos a liberdade necessária para expor tal parte de nossa personalidade,
quando ninguém estiver por perto para condenar nem julgar o singelo canto do
pássaro azul, este que não invade a casa de madrugada, mas que ganha permissão
para sair e cantar um pouco de vez em quando. E é isso que descreve Bukowski no
clássico poema Pássaro azul. Não é
uma recordação ruim nem uma consciência melancólica, mas uma liberdade que por
mais que o eu-lírico tente sufocar, ele se sente mais livre quando o permite
que saia e cante.

Há um pássaro azul em meu peito que

quer sair
mas sou bastante
esperto, deixo que ele saia
somente em algumas
noites
quando todos estão
dormindo.
eu digo: sei que você
está aí,
então não fique triste.
depois, o coloco de
volta em seu lugar,
mas ele ainda canta
um pouquinho
lá dentro, não deixo
que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim

como nosso pacto
secreto

Pássaro azul (Blue Bird), Charles Bukowski, tradução de Pedro Gonzaga
                Todos os três poetas utilizam
animais alados para se referir à consciência do narrador, ou a algo da
personalidade deles que permanece oculto até determinado momento. Até a alma do
poeta alçar vôo, até que aquilo que o poeta tenta de todas as formas esconder
de si mesmo acaba por sair do subsolo, sobrevoar sua consciência mais
superficial e revelar a ele algo que o afeta profundamente. É isso que os
poetas fazem, muitas vezes, deixar que seu inconsciente ganhe vida nas palavras
e/ou rimas para se libertar. Nos casos aqui observados, eles literalmente dão
asas aos seus semi-ocultos sonhos ou pesadelos e os deixam voar pelos versos.
Arte
da capa: John Kenn
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3 respostas

  1. Fiz uma pesquisa tentando saber se alguém já havia tentado estabelecer uma relação entre o famigerado Corvo com o Morcego, felizmente encontrei, aliás, com a sorte de ter o pássaro azul do Bukowski. Parabéns pela maravilhosa publicação!

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