A linguagem poética de
Fernando Pessoa, juntamente com a de seus heterônimos, pode sugerir, em um
primeiro olhar desatento, um pessimismo existencial e uma vontade quase que
intrínseca de negação da vida e de suas possibilidades a todo instante.
Entretanto, um olhar mais cuidadoso e perspicaz é capaz de identificar em seus
versos – em uma frase, muitas vezes – toda uma vasta abertura para as
cotidianidades do mundo e toda uma filosofia que transborda por meio de seus
sentimentos transformados em palavras que afirmam a vida em todos os seus
aspectos e possibilidades, sejam eles de erros, acertos, sujeições, mazelas, amores,
ressentimentos e inspirações que acomete quem de fato a vive.

É importante ressaltar que
Pessoa não tem a preocupação de construir sistemas e conceitos filosóficos a
partir de suas poesias, embora tenha lido muito sofre filosofia e seja
possível, para o leitor, fazer associações entre seus poemas e algumas vertentes
filosóficas, passando desde os gregos antigos até filósofos quase
contemporâneos a ele, como Nietzsche.

Seus desalentos com o
mundo e consigo mesmo denunciados diretamente em seus escritos e que
perpassaram todos os anos de sua vida podem sugerir uma escolha individual e
consciente a respeito de momentâneos afastamentos e isolamentos de tudo e todos
que o desagradavam, de como ele mesmo dizia: “semideuses”, essa gente que
“nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, nunca foi senão príncipe” (em <Poema em linha reta> de Álvaro de Campos), em que a presença constante da felicidade e do “bem viver”,
do “bem estar” e do “bem se mostrar” perante a sociedade
consomem e se constituem apenas em aparência, em que nega as trivialidades e os
infortúnios que estão presentes nas ações e também no não agir diante das
circunstâncias que se apresentam costumeiramente.

Se se podem considerar
seus versos como signos de uma angústia intermitente que sugiram apenas
inconstâncias existenciais ao longo de suas vidas, também se pode considerar a
sutileza, ao mesmo tempo rude, carregada de potência afirmadora de vida de quem
vê nas pequenezas da existência – “Come chocolates, pequena; (…) Come,
pequena suja, come! / Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que
comes!” (em <Tabacaria> de Álvaro de Campos) – a constante afirmação do cotidiano como fuga por meio de uma
persistente linguagem que provoca, instiga e, intermitentemente, propicia o
despertar da dúvida e da inquietação em quem lê e sente seus versos.

Ao transbordar em meio a
perspectivas sobre as junções de significados que nutrem a existência constante
dos seres em movimento, desses seres juntos e ao mesmo tempo solitários, as
palavras de Pessoa e de seus heterônimos podem sugerir a magnitude e a
composição de seres que não conseguem existir sem se transformarem
continuamente, sem transitarem entre explosões de sentimentos que ora dialogam
com o concreto, com o frio e com a rigidez que permeiam a vida, ora
experimentam as sensações de um “breve momento em que um olhar / sorriu ao
certo pra mim… / és a memória de um lugar, / onde já fui feliz assim.”,
características de sentimentos e emoções vivenciadas em permanente movimento.

Notadamente a inquietação
e o anseio de quem não se acostuma com a vida que lhe está sendo oferecida – ou
mesmo imposta – e que “raspa a tinta com o que lhe pintaram os sentidos”,
transita entre a ação tomada para si como engrenagem que, por meio dos seres em
movimento e conscientes de que devem carregar consigo uma “aprendizagem de
saber desaprender”, compreende os acasos, as incertezas e as tensões existenciais
presentes em suas poesias e em suas-nossas vidas.

O refúgio de seus seres em
constantes mudanças, criações e transformações ininterruptas, estando mesmo
conscientes de suas ações e interações até mesmo em seus desencontros e
afastamentos também por meio de uma consciência que figura diante de seus
sentimentos expressos em formas de palavras, acaba por permitir e sugerir a
amplidão da vida em suas possibilidades plenas, mas ao mesmo tempo inacabadas e
inconclusas, além de estimulantes entre os acasos presentes nos encontros com o
cotidiano muitas vezes áspero, mas que transita entre a acidez do discurso de
certezas e a perenidade de uma construção em contínua experimentação da vida e
das incertezas inerentes a ela.

Por mais que em suas
estrofes, frases e palavras Pessoa transmita uma permanente desesperança como
característica pungente de sua obra, há que se duvidar constantemente sobre o
que suas entrelinhas expressam e sugerem como vicissitudes da vida perdurável e
contínua, daquelas capacidades de transcenderem as banalidades existenciais e
alcançarem o inesperado, bem como subverterem as angustias, ou mesmo
vivenciá-las em sua plenitude, em sua totalidade. Pessoa, muitas vezes, diz
algo por meio das palavras não querendo dizer e, ao mesmo tempo, e em contra
partida, não diz algo querendo revelar, ou ao menos sugerir reflexões e
indagações a partir de sua poética.

Assim, a dor e o
desassossego que Pessoa e seus heterônimos presenciam, consomem e expressam por
meio das palavras como forma de sofrimentos íntimos constantes, permitindo
fazer surgir a(s) humanidade(s) do(s) poeta(s), de suas inquietudes mediante a
vida e suas relações diante o outro, do mundo e, por conseguinte, de si
próprio(s).


Transitando entre a
alteridade – que está condicionalmente presente em seu isolamento e em sua
responsabilidade de viver entre e com seus heterônimos – e a capacidade de
identificação por meio dos sentimentos e das palavras que unem as poesias de
Pessoa nas pessoas, o movimento consciente entre os seres que permeiam sua
tessitura artística e suas formas de ação frente aos inesperados e inusitados
viveres podem sugerir a superação da mistificação de um possível poeta trágico
e ressentido com o mundo que nos cerca.

  • Texto produzido a partir do curso “O ser, a consciência e o agir em Fernando Pessoa”, ministrado pelo Prof. Dr. Fernando Carmino Marques, do Instituto Politécnico da Guarda, de Portugal. Curso este realizado na UMESP – Universidade Metodista de São Paulo, em junho de 2016.

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