Ao longo do romance, temos um amadurecimento de Pierre Bourdon, em que a bile negra – a melancolia – se manifesta com o passar dos anos, num processo de autoconhecimento e autorreflexão, cujo primeiro motor é o espelho da ilha em que ele se mira. Ao ver aquelas pessoas paradas na ilha, após a viagem de navio com seu fiel criado, o Mouro, compara tudo num amálgama só (pessoas, árvores, animais). É neste espelho da ilha, que Pierre observa o rosto do mundo mais de perto e a falta do espaço interno, o lar, o joga para o mundo, percebendo os contrastes dele, a vida-morte, dor-prazer, miséria-riqueza, revelando a intensa compaixão dele pelas coisas do mundo, levando-o a partir daí a seus delírios e melancolia. O quarto de Pierre é o mundo, em sua miniatura-metonímia, a cidade de Veneza, ao invés do quarto minúsculo do autor francês Xavier de Maistre, com sua Viagem ao redor de meu quarto, com suas constantes digressões, que influenciaram Machado de Assis. O espaço do externo inebria Pierre com suas sensações, desde o mais belo ao mais repugnante. Em Pierre, o amadurecimento no ato da escrita revela um narrador excepcional: “…e que no tempo não entendia em sua extensão, mas hoje ecoa bem fundo e com plena verdade em todo o meu ser…”
O Mouro, o que dizermos do criado fiel amigo de Pierre Bourdon? Ele é o equilíbrio em meio ao desequilíbrio, o silêncio em meio ao discurso e livros do amo, a cura em meio à doença, a realidade em meio ao delírio e loucura de Pierre, Sancho Pança e Dom Quixote. Em meio à melancolia do narrador-personagem, o Mouro traz o riso. Em meio aos unguentos, ervas medicinais, banhos, Pierre vai estendendo sua vida num cobertor de vida e morte. Pierre tem o poder de ironizar-se, é sarcástico consigo mesmo, culpabiliza-se num mundo gestado pelo Mal, como ele chama. Se o universo está longe do bem, com a fome, o abandono, a morte, o sofrimento, a velhice, a humilhação, a espera, como explicar o problema do Mal e Deus, uma questão dos filósofos? Guimarães Rosa mostrou, em Grande sertão: veredas, este poder demoníaco na natureza, nas coisas. E como escapar dele? Pierre num processo de esvaziamento de sentido, de Deus, diz: “Pela primeira vez não senti Deus nem neles nem mais em mim”.
Pierre não entende aquilo que não diz respeito à sua vivência. Por isto, para ele, escrever é rememorar, uma luta contra o esquecimento e a própria morte. Por isto ele fala antes de morrer: “…recordar antes de esquecer”. No seu viés mimético, ele deve deixar algumas coisas na obscuridade, não quer saber tudo, aquilo que não lhe apraz ou condiz com seu elemento. Ele conversa consigo mesmo e com o leitor no seu processo de escrita, revelando seu livro como um grande monólogo narrativo com intensa dose de dramaticidade, beirando ao trágico, sem ter, paradoxalmente, diálogos diretos entre personagens: “Por que? então querer me enfronhar em imprestáveis minúcias, cansando minha cabeça, sem nenhuma utilidade, sequer servindo, como agora, para a revivescência dessa escrita.”
A imagem de Pierre é como a própria Veneza, um abismo, um mistério, um segredo, como as águas, o mar. Ele é sem chão, sem firmeza, desconhecido para ele mesmo. A água seria este batismo de esquecimento? O caos em meio ao ordenamento da escrita? Na viagem no mar, no navio, Pierre alcança este vazio. O vazio do quadro branco e das cores carregadas do início do livro. Este vazio é o riso do Mouro. Se Pierre é carregado de linguagem, livros, o Mouro é a não-linguagem, o esquecimento, o vazio, o silêncio, as duas faces, paradoxalmente de Pierre Bourdon e da sua escrita: “Todo mundo é um ator” (Mundus universus exercet histrioniam). O prazer da vida leva o narrador-personagem ao prazer e gosto amargo da tinta. Enquanto o Mouro tem medo do mar, das águas profundas, Pierre é todo água, flutuante e conflitante. Ele se adensa na água. Pierre é caracterizado como vírgulas, pontos e interrogações. O Mouro é reticente. No mar, Pierre poderia morrer, mas o Mouro não teria o corpo da mulher. O Mouro vê a fatalidade iminente e Pierre provoca a Desdita por nada, brinca com a Sorte, o Destino. Isto demonstra no romance de Caldas uma dramaticidade plástica, icônica. Ele cria no mundo uma intimidade de sentidos. Ele utiliza uma linguagem visual, dos olhos, mas que não deixa de ter um processo analítico para as mentes.
Se Pierre faz do externo um lar, o interior; o Mouro faz do lar um mundo como vemos na banheira no final da narrativa. O narrador-personagem faz questão de mostrar as diferenciações dos ambientes, dá destaque a cada parte, enfatizando marcas em cada descrição de sua narrativa como num caleidoscópio colorido e multifacetado, como podemos ver no contraste entre o branco e o negro no estábulo dos escravos e das múltiplas cores na fazenda, revelando no ambiente a tensão que ocorreria depois entre ele e o estranho desconhecido. Há uma grande tensão na linguagem, no romance de Caldas. Aqui de novo, no duelo, há a iminência da morte. Esta é o fim da memória e do tempo, da escrita, portanto. O esquecimento é o processo de rasura, de descascamento do ser. Pierre é um ser que hesita, se tensiona. As impressões do narrador se misturam aos delírios e o leitor se pergunta – isto é real ou delirante?
O Mouro é a consciência de Pierre. Ele sempre o está advertindo. É um dique em meio ao transbordamento de Pierre, que vê Veneza como um ser vivo, pronta a ser devorada, num verdadeiro devaneio-degustação da cidade – o corpo de Veneza – como uma mulher, numa verdadeira relação entre amante e amada. A sua real amada, por assim dizer. Numa topografia corporal, Pierre diz: “As tão drásticas mudanças no meu corpo e na minha alma são reflexos dessa cidade…” E o mouro o tira de seus devaneios. No final da vida, em meio à chuva, paradoxalmente, Pierre ri, dá uma “gargalhada sem fim”. Neste sentido, ele incorpora o Mouro. A luz e a sombra, os opostos convivem no final. Após ver a putrefação do irmão mais velho, Pierre se depara com a estátua de um anjo, mostrando a convivência entre o belo e o feio, o nobre e o asco, o alto e o baixo.
Portanto, temos em Alberto Lins Caldas, um estilo lírico e ácido ao mesmo tempo. E o grande mistério, no final, a grande questão é a própria vida nas muitas faces do ser. Pierre é um ser flutuante, como as águas de Veneza, que transmite admiração e maravilhamento, mas que reflete também a dura realidade, como as pistas que o narrador nos dá no início do livro, quando descreve suas águas cheias de peixes mortos e fezes, distante do lirismo dos poetas. Se o narrador revela a ótica da perversidade, da crueldade, também temos a cura, pois pensar sobre este estágio de desequilíbrio, de doença, é uma forma de equilíbrio, mostrando a forte dramaticidade desta relação. Assim, fica a questão de Alberto Lins Caldas, a linguagem é máscara ou revelação? A resposta cabe ao leitor inteligente como o narrador assim o quer.
“Veneza”, romance. Autor: Alberto Lins Caldas. Editora Penalux, 184 págs., R$ 40,00, 2017.
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A resenhista
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.
Contato: alealmeida76@gmail.com
O autor
Alberto Lins Caldas é pernambucano de Gravatá, onde nasceu em 1957. Colabora em jornais do Recife (Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio e Diário da Manhã) com artigos de critica literária e poesia. Fundador do grupo informal Poetas da Rua do Imperador. Cursou Historia e Arqueologia na UFPE. Ensaísta proustiano e poeta. Autor dos contos de Babel (2001), dos romances Senhor Krauze (2009) e Veneza (2017), e dos livros de poemas Minos (2011), De corpo presente (2013), A perversa migração das baleias azuis (2016) e A pequena metafísica dos babuinos de Gibraltar (2017).