Do que estamos falando quando falamos de estupro é um livro necessário.  Publicado no Brasil pela Editora Vestígio, em 2019, com tradução de  Luis Reyes Gil, a obra se revela um soco no estômago e uma publicação que nos faz refletir sobre a necessidade de combater a cultura do estupro e a violência sexual. 

Para que fique claro ao leitor da resenha, o termo cultura do estupro é assim definido pelas Nações Unidas: “a sociedade que culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens.”

Temos no livro de Sohaila Abdulali, um texto fluído, recheado de exemplos que corroboram as explanações feitas pela autora, demonstrando a crueldade humana e a necessidade de compreendermos de modo amplo o que circunda a ocorrência de um estupro ou um ato de violência sexual. É preciso ainda que saibamos como educar os meninos a respeito das relações e de como devem ver a mulher. Educação sexual, portanto, torna-se uma política de grande valia. Além disso, a autora trata da situação posterior ao estupro, pois a vida da vítima deve continuar. Sohaila fala sobre o fato de que é possível sim lidarmos com a vítima sem piorar a sua situação.

“Acredito que, no fim das contas, é positivo ter que encarar as coisas, mesmo que sejam horríveis. Mas sei o quanto pode ser difícil quando você não tem a chance de escolher quando e como irá encará-las. Todas as vítimas que, ao se depararem como  assunto ‘estupro’ ganhando destaque na mídia, ouvem a gélida voz do passado sussurrando em seus ouvidos, merecem compaixão.”

Quando falamos dessa necessidade de compreensão abarcamos a mudança da forma machista e paternalista de educar os filhos, o julgamento precipitado do comportamento da vítima (quase sempre levado a que pensem que a culpa é da mulher), a maneira como devemos acolher a vítima, a análise de movimentos como o #MeToo, o conceito e o sentido do consentimento nas relações.

A autora do livro, nascida na cidade de Bombaim, na Índia, sofreu um estupro coletivo quando tinha dezessete anos de idade. Sobreviveu ao cruel evento e atuou a frente de ações para ajudar mulheres que passaram por situação similar, ou seja, que vivenciaram o estupro ou violência sexual. Atendeu centenas de vítimas de estupro nos Estados Unidos e teve três décadas de trabalho intelectual feminista. 

Depois do episódio de estupro, chocada com o silêncio que se seguiu, fez um texto e enviou a uma revista feminina que repercutiu na época, mostrando à muita gente a história de uma mulher que falava sobre estupro rompendo a barreira do silêncio, mas não qualquer estupro, o seu próprio. Sohaila fala com naturalidade sobre o tema, o que pode causar estranheza inicialmente, mas a sua elaboração e a compreensão sobre os diversos aspectos que envolvem o crime, mostram-nos como ela é direta (talvez aí venha essa “naturalidade”). O estupro poderia ter ter culminado em sua morte, mas transformou-a numa voz que luta contra o estupro e a favor das mulheres.

“Está na hora de descartar uma ideia estúpida – a ideia de que os homens não têm como parar, que há um ponto sem volta depois que você está sexualmente excitado. Estamos aqui falando sobre a mulher ter responsabilidade sob suas ações, mas os homens também têm responsabilidade.”

Em 2012, em Nova Déli, outro estupro coletivo chamou a atenção da comunidade. No entanto, nesse caso, a vítima não sobreviveu. A matéria que a escritora produziu para o The New York Times viralizou e provocou reflexões sobre a cultura do estupro. O artigo tratava da cura após um abuso sexual.

A autora apresenta no livro abordagens que nos coloca em alerta em relação ao que falamos quando se trata de estupro e de forma contundente, com um relato emocionado e provocador, toca na ferida e não deixa com que o assunto central (estupro) saia do foco. Do comportamento social ao modo como a vítima é encarada, das punições aos relaxamento da pena a agressores, tudo é tratado não apenas como um relato ou um apanhado deles, posto que ela colheu entrevista com mulheres ao redor do mundo, mas apresentando observações que nos levam à reflexão e ao entendimento, sobretudo de compreensão em relação à vítima e a necessidade de acolhe-las.

Sohaila Abdulali é contundente em suas exposições e atinge homens e mulheres, despertando-nos a reavaliar a maneira como pensamos e agimos diante da ciência da ocorrência de um crime de abuso sexual. A autora consegue ainda usar de humor e ironia, mostrando-nos que o livro é uma ferramenta importante para que nos envolva e nos faça fazer parte do processo de mudança da cultura.

“E aqui estamos nós no século XXI, rodeados de milagres nos quais somos autores. Descobrimos como ver um ao outro em telinhas que a gente carrega no bolso. Descobrimos como fazer o coração de alguém de 17 anos bater no peito de outra pessoa de 60. Como rastrear borboletas-monarcas de Manitoba até Michoacán. Como mapear galáxias que nem conseguimos enxergar. Como espécie, somos impressionantes. Então, por que é tão difícil descobrir onde é que você deve e onde não deve pôr o seu pênis? Ou compreender que ninguém pede para ser estuprado?”

A autora consegue falar de um assunto complexo e perturbador com muita clareza e bom senso. É uma leitura daquelas que mexem conosco, mas que ao mesmo tempo que provocam revolta, nos faz apreender e romper o silêncio sobre o assunto, que muitas vezes, quando se mantém silenciado, gera apenas injustiças e a propagação de ainda mais crimes. É preciso dar voz, é preciso mudar hábitos, é preciso transformar a cultura.

Para se ter um parâmetro o Brasil teve 60.018 estupros ao longo do ano de 2017, o que corresponde a 164 casos por dia. Chocante? Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Os números provavelmente estejam subdimensionados, uma vez que ainda enfrentamos no país dificuldades nos registros desses crimes na polícia, sem contar os casos que não são levados à esfera policial e se mantém no silêncio. 

Em que pese tal consideração, os números são alarmantes e pedem por uma profunda e intensa análise e implementação de estratégias e até políticas públicas para que as mulheres sejam  atendidas após a ocorrência do estupro. Além disso, precisamos como sociedade pensar em ações que auxiliem na redução dos crimes. Compreender a cultura na qual estamos inseridos e promover um árduo processo de mudança é mais do que necessário. 

Não podemos negar a existência dos crimes e da necessidade de coibir a prática, punir aqueles que abusam e reconhecer que a cultura do estupro existe e que precisamos preparar as pessoas (a sociedade como um todo) para lidar com o assunto e saná-lo.

Do que estamos falando quando falamos de estupro é uma poderosa ferramenta para transformação. Leia. 

Sobre a autora:


Sohaila Abdulali nasceu em Bombaim, na Índia, e vive em Nova York. É formada em Economia e Sociologia pela Brandeis University – onde pesquisou os aspectos socioeconômicos do estupro na Índia – e mestre em Comunicação pela Universidade de Stanford. Atualmente é jornalista e editora freelancer, tendo publicado romances, livros infantis, contos e trabalhos de não ficção.

Ficha Técnica:

Título: Do que estamos falando quando falamos de estupro
Escritora: Sohaila Abdulali
Tradução: Luis Reyes Gil
Editora: Vestígio
Edição: 1ª
Ano: 2019
ISBN: 978-85-54216-34-6
Número de Páginas: 253

Assunto: Crimes sexuais

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