Saio inconformado daquele consultório. Quem ele pensa que é? Eu só queria ajuda para fixar a dentadura. Sua mente deveras limitada deve pressupor que sou louco. Uma loucura visceral a consumir minha sanidade, aposto.
Não estou doente, pelo contrário, meus sentidos estão mais-que-perfeitos. A audição, por exemplo, nunca esteve tão aguçada. Nenhum som do céu ou da terra me passa despercebido. Sou capaz de ouvir tudo claramente, inclusive o que acontece em outras dimensões. Como então estou louco? Como? Sinto-me ofendido. Logo ele, um dentista. Por obrigação do ofício, tinha que acreditar em mim. Você vai concordar comigo, eu sei, posso ouvir seus pensamentos também.
Vou lhe explicar como tudo aconteceu: há uma semana, ao recostar minha cabeça sobre o travesseiro, crente de algum sossego meu, a escutei pela primeira vez. Sabia que ela estava lá. Era tarde da noite, local de morada do silêncio absoluto, silêncio que fora cortado por um sussurro torpe. Outros menos privilegiados nem a notariam, mas eu a notei. Eu disse que nenhum som me escapa aos ouvidos, não disse? Era ela, certeza! Podia perceber até sua respiração, sequer ofegante. Escutava-a perfeitamente quando fui interrompido pelo gosto de ferrugem em minha boca, era sangue: a prova real de sua chegada. O espelho do banheiro, sempre sincero, me contou a verdade: era o dente que sangrava. Eu sabia! Esfreguei com força a escova a fim de expulsá-la. Ansiava novamente pelo sossego do silêncio absoluto. Queria, portanto, que ela fosse embora, que me deixasse em paz, que me deixasse dormir. Não houve jeito, ela permaneceu lá, teimosa e insistente, vigilante como toda criminosa. À espreita, à espera.
Em uma das noites, porém, me peguei surpreso ao ouvir um choro não muito distante. Um lamento por detrás do dente. Nada de ferrugem dessa vez, mas sim água do mar. A maresia adentrou pelas minhas narinas brotando das fossas nasais ora encharcadas por lágrimas daquela fada arrependida. Comovido, passei a escovar mais suavemente aquele dente, quiçá o até saltava. Minha intenção nunca foi de machucá-la. Seu chorinho acertou-me em cheio, confesso! Coitada da fadinha, pobrezinha. Sem escolhas e destinada eternamente a vida do crime estaria ela arrependida? Talvez sim!
Inevitavelmente, ficamos amigos. Contei a ela que gostava de cozinhar, de passear no parque e tocar violão. Cheguei a dedilhar algumas canções sobre redenção e arrependimento só para aliviar sua culpa. Tornamo-nos, além de tudo, confidentes. Até que numa noite, dei-me por falta do dente meu. O silêncio então regressou soberano com o jugo do abandono a tiracolo. Nunca me senti tão sozinho desde então. Acabei sendo traído mais uma vez, porém jurei a mim mesmo que seria a última. Alguns dirão que fiz o que fiz por vingança, outros por autopreservação, tanto faz! Desci ao porão, tirei de dentro da caixa de ferramentas o alicate boca-de-jacaré e, um a um, arranquei eu mesmo todos os dentes da boca. Quão tolo fui por acreditar em fadas.
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