#SomosTodosGambiarra
Rafael Caputo
Duas horas e quarenta de viagem é tempo demais pra mim. Quem mandou ter uma mente hiperativa? No trem que me leva de Madri a Salamanca, noto curioso o improvisar da mulher à minha frente. Sem perceber que é observada, corta um tiquinho da borracha do lápis escolar para substituir a tarraxa perdida de seu brinco. Quanta criatividade! Sua camiseta “I love Rio” revela donde veio. Só podia ser!
A estranha conterrânea me traz saudades lá de casa. Para preencher esse vazio, do ócio criativo crio um pitoresco personagem chamado Hélio Gambiarra. O dito cujo carrega essa graça por ser filho de Maria do Improviso com seu Zé do Jeito Brasileiro. Culpa da desconhecida.
Mas a graça não se restringe apenas ao seu nome. Minha imaginação vai mais além. Gambiarra é realmente um cara gozado: tem cabeça sextavada, duas caras, testa de ferro, cabelo de anjo, orelha seca, olho mágico, nariz de palhaço, língua de sogra e dente de leite. Possui tronco de árvore, coração de galinha, teta de nêga, barriga d´água, braço de violão, mão francesa e dedo de moça. Sua perna é de pau, tem coxinha de frango com catupiry, joelho de queijo e presunto, canela de pedreiro e pé de moleque. Na sua essência, um sujeito improvisado.
Mas nem tudo é perfeito, Gambiarra possui um segredo. Na verdade, nasceu Ana Xana. Mas o seu Jeitinho, como é conhecido por todos, tratou logo de presentear o filho com um saco de dormir, duas bolas de gude e uma enorme mandioca. Ah! Famoso Jeitinho Brasileiro. Sua fama lhe precede.
Com o pai, Gambiarra aprendeu muita coisa. Desde pequeno já furava filas, pulava a catraca, dava moedas a menos e não reclamava de trocos a mais. Quando não estava colocando em prática os ensinamentos que lhe eram passados de geração pra geração, estava brincando com o gato da tevê a cabo, seu bichinho de estimação.
Ainda menino, conseguiu dar seu primeiro nó em pingo d´água. Que orgulho! Na escola, numa época em que álbum de figurinha era a febre da molecada, trocava as figuras repetidas por tarefas de casa, cola nas provas e até seu nome inserido em trabalhos dos quais nem participou. Gambiarra era um negociador nato, sabia como ninguém tirar proveito das coisas.
Na adolescência, adulterava sua identidade para frequentar locais só para maiores. Já se acostumando a manobras e alianças baseadas em interesse próprio, usava de uma lábia poderosa para namorar duas ou mais meninas (e também meninos) ao mesmo tempo. Para ganhar dinheiro, virou camelô. Ao ser pego vendendo ilegalmente produtos contrabandeados foi defeso pela mãe que, fazendo jus ao próprio nome, improvisou o maior discurso na cabeça do delegado. Este preferiu fazer vista grossa e Gambiarra sequer foi fichado. A sorte, às vezes, também ajuda.
Com tamanha desenvoltura e malandragem, com o passar do tempo, chamou a atenção dos magnatas. Seu Jeitinho Brasileiro fez com que eles o notassem. Não demorou muito para seguir, portanto, o mesmo ofício do pai: entrou para política. É como dizem por aqui: “De tal palo tal astilla”.
Gambiarra não se elegeu deputado como queria, mas como é liso feito bagre ensaboado conseguiu malandramente virar senador sem ao menos receber um único voto. Melhor ainda! Tudo por conta de um sistema político ultrapassado, baseado em favores, composições internas e coligações partidárias. Mas quem se preocupa com isso na terra do samba, carnaval e futebol?
De senador virou candidato a presidência. Nepotismo a parte, com seu pai como chefe de campanha e sua mãe escrevendo seus discursos, o candidato superou todas as expectativas e acabou ganhando as eleições logo no primeiro turno. Graças a uma campanha de marketing impecável que conseguiu maquiar com perfeição sua imensa cara deslavada, todas as duas, diga-se de passagem.
A população se identificou com a criatividade do candidato em resolver os problemas do país, acreditou pela milésima vez em promessas e propostas. Seu Jeito Brasileiro conseguiu, de fato, conquistar o povo. A marca registrada durante a corrida presidencial foi a hashtag “Somos Todos Gambiarra”. Um sucesso!
É aquela velha história: o povo tem o governo que merece!
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A viagem chega ao fim. E que viagem! Pensando bem, até que passou rápido. O trem diminui a velocidade e para por completo. Sem querer descubro que a dona do tal improviso no brinco, que lá no início despertou minha curiosidade, também se chama Maria. Que ironia!
Descemos todos na estação de Vialia: as Marias, eu, seu José e o então Presidente Gambiarra. Agora, porém, seguimos caminhos diferentes. Volto sozinho para casa. Dez minutos de caminhada é tempo suficiente para mais uma nostalgia como saideira. Só a saudade, essa sim insiste em me acompanhar.
Já no apartamento, ligo então a tevê num canal brasileiro de notícias. Para minha surpresa, a reportagem é de um senador “indeciso” do Distrito Federal que, por incrível que pareça, se chama Hélio José. Ele pediu, absurdamente, nada mais nada menos que trinta e quatro cargos para o governo interino a fim de “se decidir” e votar a favor do impeachment contra a atual presidente. Dentre os cargos, queria o comando dos Correios e até o da hidrelétrica Itaipu, além de exigir liderar o governo no Congresso.
Quanta cara de pau! Parecia até que negociava figurinhas repetidas. Pasmem, o tal senador é conhecido justamente em Brasília, capital do país, como Hélio Gambiarra. A alcunha não deixa de ser uma homenagem (se é que podemos dizer assim) por ele ter desviado energia da Companhia Energética de Brasília (CEB) para realizar um churrasco. Eu também não acreditei, quanta coincidência! Surreal demais até mesmo pra mim e o meu pensar hiperativo. Nunca a expressão “a vida imita a arte” fez tanto sentido.
Se o Gambiarra da vida real também chegará a presidência como seu homônimo hipotético, isso já não sei. Mas lá na terra do improvável, apelidada de Brasil, por culpa do jeitinho brasileiro não duvido é de mais nada!
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Nota do autor: este conto poderia facilmente ser considerado uma crônica, ou ainda uma piada (de muito mal gosto, eu sei), já que o político Hélio Gambiarra existe de fato, assim como suas exigências descabidas citadas na narrativa e feitas em público há alguns anos. Acredite você ou não, isso aconteceu de verdade. Inclusive, o churrasco.
Conto publicado na coletânea “Contando Ninguém Acredita”, de autoria deste que vos escreve.