Ana Paula Sá2
Qual é o amor
que nos captura – se é mesmo que o arrebatamento existe?
Seriam nossas idealizações aquilo que comumente chamamos de amor
romântico? Ou, de fato, a presença e as ações de outra pessoa são aspectos que
definem nosso modo de olhar e significar sua/nossa existência?
Me pego cheia de questionamentos, a partir do encontro com o eu
lírico de O amor pelo qual me apaixonei,
descrito como um homem apaixonado e assumido pelo autor como uma expressão de
si, uma vez que o texto é apresentado como derivado de uma experiência
pregressa do próprio Pierre-Richard Gerisma.
Talvez esse caráter de verdade tenha me inquietado muito diante da
leitura e tenha me feito ter presente a imagem do escritor enquanto lia a
expressão dos sentimentos do eu lírico. Começo explicando que é difícil, para
mim, desapegar de um conceito de pós-verdade, mesmo diante de um discurso que
se diz autobiográfico, tanto por ser tratar de criação literária – neste caso,
livre para transformar e criar mundos -, quanto por compreender que todo relato
é a expressão de uma narrativa filtrada por uma subjetividade que conta. Neste
caso, acrescente-se que, ao narrar sobre si, cada pessoa expressa mais sobre o
modo como vê o fato do que sobre o fato visto.
Aqui, minha leitura destaca algum anacronismo entre o relatado e o
comumente vivenciado, em pleno século XXI, pois causa estranheza um homem tão
devotado e virtuoso, no tempo atual – uma vez que o enredo estaria situado nos
primeiros anos deste nosso século, tendo como personagens um homem e uma mulher
em fases de vida adulta.
A leitura foi para mim um exercício ativo de atenção e cuidado,
para que algumas perspectivas minhas sobre o mundo não entrassem em conflito
com algumas perspectivas do autor. Tentando me libertar de marcadores sociais e
filosóficos, o mínimo que consigo manter é este marco temporal contemporâneo
entre o tempo da narrativa e o tempo em que leio o texto, daí meu estranhamento
acima citado.
Outro marcador se refere à condição de vida dos sujeitos narrados,
que se destacam culturalmente: jovens estudantes de medicina, em um país de
baixo desenvolvimento e intensas crises sociais e políticas. Novamente, busco
atenuar o atravessamento das questões socioculturais, embora tenha consciência
de que esta neutralização não é possível de atingir. Digo isso, para expor a
dificuldade em descolar do texto um olhar masculino a conduzir a narrativa.
Embora as questões de gênero na escrita sejam difíceis de delimitar, e não cabe
aqui a discussão, permito-me afirmar que é um texto eminentemente masculino e que
expressa uma visão de sociedade pautada em valores heteronormativos de
afirmação de papéis que não escapam ao padrão – homens valorosos se apaixonam
por mulheres virtuosas.
Tomo o livro como uma narrativa sobre um amor que acometeu o eu
lírico, expressa por meio de poemas e textos em prosa, semelhantes a cartas ou
depoimentos. A maior parte do tempo há a presença da amada como narratária, a
quem são destinados os textos, mesmo aqueles formatados como expressões de um
momento de reflexão do eu lírico. O caráter depoimental é também bastante
presente, como se a escrita fosse um meio de confissão – e também de
convencimento, por vezes, argumentativo. O cavalheiro se expressa não apenas
como um amante, mas também como valoroso homem, imbuído de beleza e
inteligência, digno de ser amado e disposto às maiores honras e esforços, em
nome da mulher desejada, da retribuição de seu afeto, da concretização desse
amor.
Aqui destaco a construção deste sujeito a partir do arquétipo do
herói, com direito a sacrifícios, provações e sofrimentos incapazes de promover
reações de ódio e rancor. Como previsto em qualquer saga – real ou ficcional -,
os obstáculos surgem para a consolidação desse amor. Neste caso, personificado
na presença de uma terceira pessoa, um rival – assim mesmo intitulado –
poderoso, capaz de tudo conquistar, inclusive o interesse da mulher em
destaque.
Curiosamente, há pouco espaço para a presença desta mulher. Na
verdade, há pouca descrição sobre as pessoas citadas no texto. O que nos é
oferecido é a perspectiva do eu lírico sobre tais sujeitos – inclusive narrando
a si mesmo. Tal distanciamento me afasta de possibilidades de identificação com
os personagens, justamente por um caráter que compreendo como idealizado. É
possível ser rejeitado e se manter em felicidade e amor benevolente? Como não
se abalar diante do silêncio ou da ausência da criatura desejada? Em nome de
quais valores, o herói abdica do amor, em detrimento de benefícios ao ser
amado?
É justamente o caráter divino e arquetípico que me sugerem um
toque ficcional ao texto. E com isso não digo que os fatos não aconteceram, que
seja uma história inventada, apenas me questiono quanto do que lemos foi
vivido, sentido e interpretado de modo distinto pelas pessoas envolvidas.
Destaco, portanto, que minha leitura é direcionada e atenta à perspectiva deste
eu lírico que narra o drama de amar. Ou seja, é seu olhar sobre os fatos e
pessoas que me conduz e me diz como olhar para o que ele viu.
Também sobre descrição, em alguns momentos a linguagem é bastante
racional, ilustrando o mundo visto por este homem patologicamente apaixonado. E
aqui me pergunto: apaixonar-se não é exatamente isto – perder a razão, alterar
os sentidos, sofrer de desejo, desmantelar-se e modificar rotas? É aqui onde a
narrativa de Pierre-Richard me captura – na possibilidade de compreender seu
estado alterado de consciência, seu olhar perturbado por uma vontade não
concretizada.
Em muitos momentos da leitura senti-me lendo alguém de outro
tempo, numa expressão autêntica das escolas literárias românticas, com seus
valores de idealização do amor e da mulher, sublimação do sentimento, diante da
não consolidação em atos, além de uma presença do transcendente – ora expressa
por meio de entes divinos, ora expresso por meio da natureza. Margeando quase
todo o texto, a expressão de um desejo pela concretização de um encontro
carnal, a presença de uma corporalidade sensual, desejante e desejada, mas
postergada e depois dispersa em outros corpos e outras presenças que não os/as
do casal pretendido. Embora me pareça explícito esse apelo à sexualidade, o
mesmo é marcado por uma aura de consagração, como um prêmio, um presente, uma
glória interditada ao herói. Neste aspecto, reitera-se, para mim, o diálogo do
autor com a tradição do romance e das narrativas clássicas, inclusive
religiosas.
A divisão do texto foi algo cujo sentido me escapou. Mesmo assim,
compreendo que, ao avançar na leitura, vou encontrando um eu lírico mais
reflexivo, mais amadurecido, mais resignado. Suponho uma distinção temporal
entre as escritas de algumas partes do livro, tomando como referência a
realidade pessoal do autor que se põe como eu lírico. Embora não deixe de
supor, também, a hipótese de que tudo seja um recurso narrativo, o que somente
apontaria sua capacidade de criar boas histórias. Sinto, portanto, alguma
dificuldade em definir e enquadrar a obra, diante do hibridismo de formatos e
da variação que apresenta – não sendo isso um defeito.
O amor pelo qual me
apaixonei é
uma leitura que me roubou de mim, trouxe questionamentos e estranhamentos, me
fez rir em alguns momentos – diante do estranhamento, mesmo, e não por ser
engraçado – e me fez respirar fundo em outros, me trouxe para junto, me buliu
(como dizemos aqui no Nordeste). Inesperadamente, me leva/levou a pensar em
muitas coisas sobre mim mesma e sobre meu olhar perante o mundo. Demanda outras
leituras para que eu consolide minha percepção sobre a obra. Percebo,
entretanto, que é necessário fazê-lo sem pressa, porque o encontro com esse eu
lírico me diz muito, para além das palavras usadas.
Se Pierre-Richard Gerisma escreveu o texto como forma de se
libertar de tudo que viveu, o que consegue, como maldição de escrita, como sina
de poeta, é entregar-se a cada leitura, num movimento de exposição de suas
entranhas, de seus desejos, de suas projeções. E ao pensarmos sobre quem é esta
pessoa que ama deste modo, nos captura num sem-fim de perguntas sobre também
nós que o lemos, sobre o que é amar, como amar de modo válido. Está armado o
feitiço!
Termino reiterando as perguntas iniciais, para as quais não
pretendo respostas, justamente porque perguntar é o que nos põe em marcha,
enquanto que achar respostas é o que põe fim às demandas. O amor pelo qual o eu
lírico se apaixonou existiu fora de si e o conquistou? Ou esta locução
conjuntiva “pelo qual” é apenas questão de tradução e não deve ser compreendida
de modo literal? Sou levada a crer, a partir do título e do conteúdo da
escrita, que o eu lírico se apaixonou, como ato deliberado e unilateral, por um
amor que criou para si, como
expressão de seus desejos e anseios, de forma idealizada, para
atender às imagens que nutria como representações d’O Amor enquanto ente. E ao
lê-lo assim, é sobre mim mesma que reflito, porque, no fim, o que todo mundo deseja
é ser correspondido e validado pelo olhar alheio, nem que seja por meio de
ilusões e idealizações.
Nem sempre viver é melhor que sonhar – a despeito dos versos de
outro poeta. Porque amar sozinho nunca é suficiente.
1 Texto escrito a propósito da apreciação da obra “O amor pelo qual me apaixonei”, gentilmente ofertado pelo autor Pierre-Richard Gerisma.
2 Professora de língua portuguesa e dramaturgista; natural do Recife / PE (BRA); curiosa das artes e tocada por algum senso estético.
Ana
Paula Sá é professora de língua portuguesa e mestra em educação pelo programa
de Pós-graduação em Educação da UFPE
(2021).