Farol de Santa Maria, em Santa Catarina, no Brasil |
Um
marrom-esverdeado, manto fosco que cobria o Mundo. Borbulhas de gases venenosos
cresciam e estouravam, para conduzir elementos das profundezas à superfície. Nela,
talos de verdes plantas cônicas se dobravam perante o vento furioso que
insistia em soprar. Na linha do horizonte, tentáculos quilométricos vagos e
incertos mesclavam a realidade de um planeta moribundo com o céu sem limite
definido com o espaço sideral.
Cinquenta
metros separavam-me da embarcação. Flutuava, mas à deriva. Se havia algo nela,
estava em silêncio. Quieta. Mas o cheiro de amônia concentrada, acre e
venenoso, era emitido do interior do barco.
Remei
com força, desviando-me do barco abandonado. O céu confundia-se com a água. Eu
estava em uma zona de calmaria, ausente de seres que fossem amistosos ou hostis.
As estrelas, se existissem, poderiam ter sido devoradas pelos entes
tentaculares ou se recolhido para o outro lado do mundo.
Incerto,
sentei-me. Havia remado de pé sobre minha canoa por três horas, assolado pelo
vento. Tempo de descansar era exigido de mim. Estiquei-me, os braços, pernas, o
pescoço, fiz movimentos de alongamento e bocejei de sono. Deitei-me e dormi.
–//–
O
pesadelo insistiu em voltar do murmúrio sem som que era meu inconsciente, por
várias vezes. A barreira que censurava minhas perturbadas lembranças impediu
que eu acordasse. Quando senti minhas vias aéreas sendo bloqueadas pelo sal e
pelas algas que flutuavam por perto, despertei e agitei-me, procurando a canoa.
Estava distante. Boiando, limpei meu nariz da água salobra e das plantas que
insistiam em tentar entrar em meus pulmões. Nadei seiscentos a mil metros,
furioso comigo mesmo. Quando cheguei à canoa, esta, emborcada, começava a
soçobrar. Verifiquei o casco e constatei que não havia rombos ou orifícios.
Mergulhei,
agarrando a borda do barco. Bati as pernas com todas as forças e consegui
virá-lo. O ar que permanecera armazenado no espaço criado sob a água impedira
que a estrutura afundasse com rapidez. Calculei que restavam duas horas para
que a o espaço vazio da canoa virada ao contrário se enchesse de água.
Lembrei-me
que há cinco horas lancei-me ao mar, vindo do continente. Minha terra natal.
Uma cidade pequena, sofrendo constantes ataques vindos de outras mais
bem-armadas, fortes e maiores. Escapei à noite, pouco antes do amanhecer,
enganando os guardas da paliçada, que serviam tanto para vigiar o exterior,
como o interior da cidade. Ninguém podia sair, para que o risco de deserção
entre as defesas fosse mínimo.
Subi
na canoa. Por pura sorte, o remo ficara preso sob duas travessas de madeira, presas
de lado a lado no barco, de forma a que se pudesse viajar sentado. Observei os
tentáculos no horizonte. Decerto alguma espécie de serpente de dimensões
absurdas. Olhava para o Norte. Além de onde esses animais estavam, existia o
gelo, eu acreditava. O que não me dava opções. Virei-me para as outras
direções. Não podia voltar para o continente, ao Sul, ou seria esfolado vivo
por deserção.
O
Leste conduzia a um estreito e ao “fogo que nunca apaga”… Mito ou Lenda,
fábula ou crônica, o certo era que seria a segunda opção. Mas o Oeste era
plácido com os navegantes. Ilhas paradisíacas, outros povos, outras raças,
algumas de olhos que não piscavam, outras de pele branca como mármore.
Decidi-me por essa direção.
Não
havia trazido comida ou água. Uma vez, passara duas semanas sem comer ou beber,
sobrevivendo graças a uma teimosia que insistia em testar-me. Mas eu sabia que
existiam terras firmes na direção em que o Sol se punha. Agarrei o remo e dei
com ele com vontade na água. A canoa ganhou vida.
Não
sei se o que aconteceu foi obra da sorte ou do Destino, mas no segundo dia de
esforço ininterrupto com o remo, consegui avistar as praias de uma ilha, ou
atol de corais. Era pequena, mas era terra firme!
Remei
com segurança e alívio. Poderia comer cocos e caranguejos, beber água da chuva!
Isso estava além do que pensara em conseguir em tão pouco tempo. Pulei da
canoa, quando ela encalhou, e puxei-a para as areias. Vi, em pouco tempo,
caranguejos, mariscos, estrelas do mar, lagostins, camarões… a praia era rica
em animais comestíveis!
Mas
precisava montar uma cabana. Com o passar do tempo, em que eu caminhei cerca de
dois quilômetros ou tanto, carreguei bambus e folhagens do interior do atol
para a praia. Minha praia! Eu a merecia e continuava a trabalhar, contente por
ter um pedaço de terra para viver.
À
noite, já havia montado a cabana, acendido, com pedras de sílex, uma fogueira e
comia crustáceos que assara no fogo. Decidi que ficaria um mês na ilhota e
partiria para o continente Ocidental. Porém, nuvens cinza-escuras se formaram
ao Norte e vieram em direção da ilha. Ventos de cem quilômetros por hora
desfizeram a cabana construída por Mereth e a canoa emborcou sobre a areia,
sendo arrastada encosta acima, afastando-se da costa.
O
homem segurou-se na embarcação como pôde, de bruços sobre ela, até a tempestade
passar. O céu se abriu em um azul sem nuvens e Mereth decidiu que tinha de
partir. Olhou em volta e viu com tristeza a destruição que o ciclone havia
feito. Da cabana, restaram um ou dois troncos de bambu. As árvores da mata
estavam, perto da praia, vergadas e desfolhadas. Era impossível para o
navegante saber ao certo se toda a ilha fora devastada.
Mereth
passou a corda que servia para atracar o barco em um píer pela cintura. Havia
catado siris, peixes, lagostas, camarões, o máximo de comida que podia
transportar na pequena canoa. E cocos e frutas as mais diversas, para matar sua
sede. Quando o Sol estava no zênite, arrastou a canoa cheia por alguns metros,
até chegar no mar. Puxou-a até a beira-mar, que dava na cintura, e subiu no
barco.
Gaivotas
lutaram pela comida, mas Mereth as afugentou, com golpes do remo. Seguindo o
rumo Oeste, remou o suficiente para ficar bastante cansado. Então, serviu-se de
uma lagosta e comeu um cacho de uvas.
Talvez em breve eu chegue ao
continente, se remar com afinco, pensou o viajante,
quando estava descansado. Remou por três horas, com energia e determinação. Em
uma semana, remando três horas, comendo por quinze minutos e continuando nesse
ritmo, avistou a luz de um farol, à meia-noite, pouco antes de dormitar.
Amarrara o leme da canoa, apontando para o Oeste, e, desse modo, podia dormir
por oito a dez horas, sem perder o rumo.
Atento
aos recifes que se espalhavam pela costa, à luz do farol, Mereth se desviou,
até alcançar uma praia segura. Remou até dar na areia e lembrou-se de Siriath,
uma namorada que tivera na adolescência, e abandonara para tentar a sorte no
Leste.
Quis
que ela o achasse.
A
praia estava quase deserta e o navegador viu um grupo de homens e mulheres
vindo em sua direção.
Não há nada a fazer, pensou,
se forem de paz, estarei com sorte. Mas
tenho meu remo, ainda.
Uma
mulher era bela, destacava-se dos outros. Mereth entreabriu os lábios e jogou o
remo de volta à canoa. Sem acreditar, reconheceu-a como Siriath.
—
Você é Siriath? — perguntou, juntando-se ao grupo.
—
Sim. Mas, não me lembro de você.
—Vim
do continente Leste. Tenho o que contar a vocês — ela franziu a testa, curiosa.
— Meu nome é Mereth, aquele rapaz que conheceu há dez anos e,
irremediavelmente, a abandonou para viver entre os povos do mar Leste.
—
Veio me procurar, então?
—
Quer um cacho de uvas, minha amiga?
Ela
aceitou. Falou para o grupo esperar por ela no farol. Comeu uma baga de uvas e
sorriu.
—
Um gosto de sanidade.
Ele
pensou que havia ouvido mal.
—
O que?
Ela
comeu outra baga e continuou a sorrir.
—
É um jeito de dizer que tudo voltou ao normal. Espere… espere, tenho tanto a
dizer, e você tem tanto a me contar…
—
Todos aqui no continente possuem manias. Tiques. Todos, menos eu. Você me
parece bem, até onde posso ver. Mas as uvas… deixaram de crescer, aqui no
Oeste. Lembrei-me de nossas brincadeiras, no Verão de 2099. Cinquenta anos
depois das Guerras Globais.
—
Não deixaram que usassem armas nucleares.
—
Não, nem armas químicas ou bacteriológicas.
Ele
olhou para os olhos dela e falou:
—
Eram uma raça mais adiantada. Queriam ver o que aconteceria se lutássemos como
na Primeira Grande Guerra, sem os gases.
—
Venha, estão esperando por nós.
Subimos
a praia e fomos até o local do farol. Assamos marshmelloes nas fogueiras que haviam ateado e esperamos até quando
o dia raiou.
—
Quer subir o caminho dos porcos-espinhos, até minha casa? — Seriath perguntou,
como quem não quer nada.
Abanei
a cabeça, sorrindo. Subimos cerca de mil metros e chegamos à casa dela. A muher
falou para eu me acomodar no sofá da sala e disse:
—
Pode viver comigo, não tenho um parceiro há cinco anos.
—
Sim, eu gostaria. Veja quem vem subindo a trilha — eu havia pensado que Siriath
gostaria de alguns camarões que eu havia trazido.
Comemos
os crustáceos e ela falou:
—
Estava tão bom! Pense em alguém que venha consertar minha calha, na lateral da
casa — Eu o fiz e um engenheiro chegou em um cavalo pela trilha dos
porcos-espinhos.
—
Olá! Soube que há serviço para um recém-diplomado.
—
É formado em construção civil? — perguntei, um tanto confuso.
—
Em engenharia civil, mais
propriamente dito.
À
noite, ela estava exuberante. Arrumara-se para a festa das lagostas, ao pé do
farol. Um maiô de uma peça, um broche de diamantes e turquesas. Eu vestia uma
simples camiseta e bermudas. Comemos até nos fartarmos e decidirmos
explorar o farol.
Conservado,
possuía um quarto com uma cama de casal e um criado-mudo com uma luminária.
Seriath jogou-se na cama, com um ranger de molas.
—
Deseje.
Eu
não o fiz. Deixei que as coisas seguissem seu rumo.
As
estrelas estavam brilhantes, de fato. Mas, ocupados, esquecemos de apreciar sua
bela cintilação.
nova família.