As Crônicas de Maslow
Rafael Caputo
A primeira coisa que vi ao acordar foi a temperatura na tela do celular: menos um grau. Um verdadeiro milagre! Muitos teriam preguiça em sair da cama, mas não eu. Pulei de pronto. Corri para a janela do apartamento em busca de um vislumbre matinal. Lá estava ela: a geada mais do que esperada. Já não era sem tempo! Agora sim, sinto-me TOTALMENTE realizado. Tenho sorte em morar no oitavo andar do prédio e em frente a um enorme terreno baldio. A branquidão dessa época do ano, enfim, irá preencher meus stories nas redes sociais. Chega da hashtag #thewinteriscoming. “The Winter” chegou com tudo.
Devo ter algum defeito de fábrica, só pode! Apesar de carioca, amo o frio. Talvez, seja por isso que me mudei para Curitiba. Isso já faz algum tempo. Vim com a desculpa de uma oportunidade de trabalho e por aqui fiquei. Entra ano e sai ano, espero ansioso por essa que é, sem dúvida, a melhor das quatro estações.
Alguns acreditam que tudo fica mais chique. Concordo com eles! É hora de vestir a jaqueta de couro, o cachecol, o sobretudo… e sair pelas ruas da cidade cosmopolita atrás de um belo quentão, um cappuccino ou um chimarrão. Este último, influência dos primos gaúchos.
Eu, particularmente, confesso que prefiro o frio por um motivo bem diferente. Ele reforça o fato de que estamos, realmente, vivos. É engraçado, eu sei! A verdade é que a sensação térmica negativa me remete a nossos ancestrais; e como professor de Administração, também não posso deixar de associar tal sentimento à famosa Pirâmide de Maslow, teoria motivacional que tenta explicar o comportamento humano.
Na base da pirâmide, por exemplo, estão as nossas necessidades básicas ou fisiológicas. No frio, temos fome várias vezes ao dia. Para que possamos sobreviver, é preciso “caçar” e estocar alimentos. Satisfeita essa vontade, buscamos maior proteção ao passarmos mais tempo dentro de casa, nossa caverna da era moderna – a segunda necessidade a ser suprida.
Subindo mais um nível na chamada “Hierarquia das Necessidades”, nos deparamos – justamente – com a carência latente do ser humano em se socializar. Precisamos aquecer nossos corpos (e nossos corações) com a presença do outro. Seja com nosso companheiro ou companheira, ou ainda com nossos amigos. Em pleno século vinte e um, substituímos o compartilhar da carne de caça em volta da fogueira por uma reunião ao redor da lareira da sala, com um pedaço de pizza na mão e uma taça de vinho na outra. Inclusive, essa é uma ótima ideia para hoje à noite.
Também é no inverno que percebemos nossa fragilidade como seres humanos e, ao mesmo tempo, podemos nos vangloriar de nossa extrema capacidade de adaptação, responsável por nos trazer até aqui. Quase um paradoxo. Passamos a ser mais solidários: doamos cobertores, nos apresentamos como voluntários para distribuir sopa nas praças etc. De algum jeito, tentamos fazer a diferença em nossa sociedade. Nos importamos com o próximo. Algo me diz que Maslow previu tamanha necessidade como sendo de “estima”, uma das últimas que aparecem em seu diagrama em forma de triângulo.
No topo da pirâmide, por sua vez, a realização pessoal (ou a autorrealização). Para uns, uma utopia – algo impossível de ser alcançado. De acordo com esses pessimistas: nós, seres-humanos, seríamos incapazes de nos aquietarmos com a satisfação plena. Quanta bobagem! Eles acham isso porque não viram as minhas últimas postagens. Concordo mais com os pensamentos da falecida Carmem da Silva, uma colega literária que certa vez, em sua coluna na famosa revista Cláudia, autointitulou-se Nossa Senhora dos Milagres. Maslow estava certo, nunca me senti tão feliz! Isso sim é um milagre de verdade. Abracadabra!
Dias depois, entretanto, entediado com a paisagem vizinha pela janela do apartamento, levemente esbranquiçada, questiono-me: “O que é uma simples geada em comparação à neve de fato?”. A conclusão é inevitável: acho que é hora de mudar novamente. Canadá, aí vou eu!
🔺
Crônica selecionada no II Concurso Literário Carmen da Silva, promovido pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG, em parceria com o Instituto de Letras e Artes – ILA e Instituto Federal do Rio Grande do Sul – IFRS.