Merton Somerset é um escritor inglês que vive em Tarawa do Sul, Kiribati. Residiu por alguns anos no Brasil, onde iniciou a tradução de seus próprios textos para o português. Sua obra transita entre filosofia, teologia, sociologia e literatura, explorando temas como culpa, silêncio, tempo, absurdo e escuta. Mantém-se em anonimato por convicção estética, permitindo que seus livros se comuniquem diretamente com o leitor, sem intermediações biográficas.

ENTREVISTA:

Conexão Literatura: Poderia contar para os nossos leitores como foi o seu início no meio literário?

Merton Somerset: Não sei se houve propriamente um “início” no meio literário. Seria mais honesto dizer que houve um afastamento lento, quase imperceptível, daquilo que costumamos chamar de realidade compartilhada.

Enquanto muitos começam a escrever para entrar no mundo, eu escrevi como forma de sair dele — ou ao menos de tentar compreendê-lo desde fora, ou desde dentro, num lugar onde as palavras ainda não são públicas.

Durante muito tempo, escrevi em silêncio. Sem intenção de publicar. Sem projeto definido. Apenas uma escuta constante de algo que parecia falar por dentro, sem voz. Escrevi por necessidade, não por vocação.

Meu convívio com o que se poderia chamar de “meio literário” sempre foi distante. Nunca me senti parte de um circuito, de uma comunidade artística. Li muito, e sigo lendo, como quem ouve uma língua esquecida. Escrever, para mim, nunca foi sobre carreira, mas sobre ritmo interior — uma forma de atravessar o tempo.

Talvez, se houve um início, ele tenha acontecido num lugar onde o silêncio pesava mais que o discurso. Uma biblioteca abandonada. Uma igreja vazia. Ou um banco de praça onde ninguém mais sentava.

Hoje, olhando para trás, vejo que essa distância nunca foi recusa, mas condição. Escrevi porque precisava me aproximar de algo que não podia ser dito de outro modo.

Conexão Literatura: Você é autor do livro “O Homem que Falou com Deus”, poderia comentar?

Merton Somerset: ‘O Homem que Falou com Deus’ nasceu de uma inquietação antiga: o incômodo com o modo como certos personagens da tradição foram empurrados para fora da escuta.

Judas Iscariotes, talvez mais do que qualquer outro, tornou-se um símbolo absoluto — da traição, da condenação, do limite ético. Sua presença na narrativa bíblica é quase sempre silenciosa, mas carregada de significados prontos, como se nada mais pudesse ser dito sobre ele.

O livro começa com uma entrevista — não uma entrevista jornalística, mas uma tentativa ficcional de escuta íntima. Alguém, em um tempo e espaço não determinados, encontra Judas e o escuta. Ele fala. Não para justificar-se, mas para revelar as dobras do gesto que o definiu para sempre.

Mas a obra não termina aí. Há uma segunda parte, mais densa, onde se encena um julgamento metafísico de Judas. Não um tribunal terreno, nem religioso, mas uma espécie de rito — onde vozes diversas, representando perspectivas éticas, espirituais, humanas e inumanas, são convocadas a opinar.

O objetivo não é absolver, nem condenar. É tornar a escuta possível. O julgamento é, na verdade, um espelho: ele nos devolve nossas próprias categorias de justiça, culpa, compaixão e medo.

Escrevê-lo foi como montar uma cerimônia que talvez ninguém tenha pedido, mas que de alguma forma se impôs. Um espaço onde o humano e o inominável se enfrentam em silêncio.

Para mim, não é um livro sobre fé. Nem sobre teologia. Muito menos sobre autoajuda. É um livro sobre a dificuldade de escutar o que já julgamos. E sobre aquilo que ainda não conseguimos — talvez nunca consigamos — perdoar.

Conexão Literatura: Como é o seu processo de criação? Quais são as suas inspirações?

Merton Somerset: Meu processo de criação talvez se pareça mais com um processo de escuta do que de invenção. Eu não costumo “criar” ideias — elas me visitam. Às vezes, ficam. Outras vezes, passam sem deixar bilhete. E há aquelas que voltam depois de anos, com outra forma, outra voz.

Escrevo em fragmentos. Em silêncio. Nunca começo sabendo o que será. Costumo me aproximar das palavras como quem se aproxima de uma fogueira acesa em uma casa abandonada: com respeito, estranhamento e um certo temor.

Não trabalho com horários fixos, metas ou estruturas definidas. Trabalho com ausências. Com ritmos internos. Há dias em que escrevo quatro linhas e isso basta. Outros em que passo horas perseguindo uma frase que insiste em não nascer.

Minhas inspirações vêm de lugares muito distintos — e nem sempre literários. Sou profundamente tocado por tradições espirituais que lidam com o silêncio como linguagem: a teologia negativa, o misticismo judaico, os desertos da tradição cristã. Mas também por pensadores como Simone Weil, Borges, Clarice Lispector, Camus, Kafka, Levinas… E pelas ciências humanas, sobretudo quando se aproximam do abismo: a sociologia da morte, a psicologia do trauma, a antropologia do invisível, a filosofia do desespero.

Também encontro inspiração no cotidiano. Uma sombra numa parede. Uma frase dita por engano. Um gesto mal compreendido. Um silêncio que se repete.

Talvez meu processo seja esse: habitar o mundo como quem escuta um sussurro constante, vindo de um lugar que ninguém sabe ao certo onde está. E escrever para não interromper essa escuta.

Conexão Literatura: Poderia destacar um trecho do seu livro especialmente para os nossos leitores?   

Merton Somerset: Sim, o trecho que destaco é este:

“— Quer me conhecer? Pois bem… eu sou Judas, filho de Simão, chamado Iscariotes. Para muitos, sou apenas um nome maldito, um traidor. Para outros, uma peça inevitável de um jogo que nunca esteve em minhas mãos. Mas o que sou para mim mesmo?

— Fui discípulo, fui amigo. Caminhei ao lado d’Ele, vi os milagres, ouvi as parábolas. E não pense que fui cego ou surdo. Não, eu compreendia. Eu via algo n’Ele que ninguém mais via — ou talvez via algo que ninguém queria admitir.

— Mas me diga, o que exatamente você quer saber? Quer a história que os outros contam, ou quer a verdade que nunca foi dita?​”

Destaco esse trecho porque, para mim, ele representa o momento em que Judas deixa de ser um símbolo e se torna voz. Não uma voz que busca justificar-se, mas que ousa perguntar: “Você está disposto a me escutar de verdade?”

Conexão Literatura:  Como o leitor interessado deve proceder para adquirir o seu livro e saber um pouco mais sobre você e o seu trabalho literário?

Merton Somerset: Não há muito a ser descoberto sobre mim — e isso é intencional. O livro está disponível pela Orel Books, que tem cuidado com zelo e silêncio da edição da minha obra em português, por meio do Clube de Autores, em https://clubedeautores.com.br/livro/o-homem-que-falou-com-deus.

Quem desejar seguir os ecos da minha obra poderá encontrar fragmentos, pensamentos e silêncios nos meus perfis nas redes sociais (enquanto me deixarem!) e no meu site (mertonsomerset.com, em desenvolvimento). Estou no Instagram (@mertonsomerset), Facebook (/mertonsomerset) e LinkedIn (/merton-somerset) — mas não como quem se mostra, e sim como quem sussurra.

O essencial, no entanto, não está nas redes. Está nas entrelinhas. E talvez, se houver escuta, também nas ausências.

Conexão Literatura: Como você analisa a questão da leitura em seu país?

Merton Somerset: Falar da leitura em “meu país” é, para mim, uma tarefa estranha. Nasci na Inglaterra, vivi um tempo no Brasil e, há alguns anos, habito Tarawa do Sul, em Kiribati — um lugar onde o tempo é diferente e os livros são poucos, mas o silêncio é abundante.

Na Inglaterra, a leitura é parte de uma longa tradição. Há um respeito institucionalizado pelo livro, mas também certa saturação. Às vezes, tenho a impressão de que se lê muito para saber, mas pouco para ser afetado. Os livros ali são como retratos de família: estão nas prateleiras, são citados, mas raramente olhados nos olhos.

No Brasil, encontrei algo diferente. Uma sede de escuta. Não falo de estatísticas, mas de intensidade. Vi leitores que leem como quem busca ar, entre ruínas e esperanças. O livro, por vezes, chega tarde — mas quando chega, explode. Há algo de urgência, de carne, de fé na leitura brasileira que me tocou profundamente.

Em Tarawa, quase não há livros. Mas há marés. E silêncio. E crianças que sabem contar estrelas. Aqui, a leitura acontece de outro modo: escuta-se o vento como se ele tivesse narrativas, e a ausência de páginas também ensina. Talvez por isso eu tenha vindo para cá — para reaprender a escutar antes de escrever.

Em todos esses lugares, o que mais me comove são os que ainda leem com demora. Com reverência. Com a disposição de serem transformados — não informados.

Conexão Literatura: Existem novos projetos em pauta?

Merton Somerset: Sim, mas prefiro não os apressar com palavras prematuras. Tenho aprendido que cada livro carrega um ritmo próprio — e que a linguagem, quando forçada, se defende com o silêncio.

Há, no entanto, dois projetos que vêm me acompanhando há algum tempo. O primeiro é um livro de contornos alegóricos e filosóficos, com um tom mais irônico, que propõe uma travessia inusitada entre o cotidiano e o metafísico por meio da comida, da memória e do pensamento.

O segundo é uma coletânea de contos — ou fragmentos de experiências — que tratam da finitude, da consciência e do invisível que pulsa sob a superfície da vida moderna.

Mas mais do que projetos formais, o que me move é a escuta. Escuto o mundo, as pessoas, o tempo e suas rachaduras. E às vezes, de tanto escutar, algo emerge — não como resposta, mas como tentativa de nomear o que ainda não sabemos dizer.

Se algo virá a se tornar livro, não sei. Mas sigo escrevendo como quem acende pequenas velas em corredores escuros. Alguma luz, talvez, se deixará ver.

Perguntas rápidas:

Um livro: “Os Irmãos Karamázov”, de Dostoiévski. Todo julgamento começa com uma pergunta sobre o pai.

Um ator ou atriz: Liv Ullmann. Poucos olhares sustentam tanto silêncio.

Um filme: “O Sétimo Selo”, de Ingmar Bergman. Um homem, uma dúvida, uma partida de xadrez com a morte — tudo o que um diálogo precisa.

Um hobby: Observar o mar em silêncio. Ou o que quer que reste do tempo entre uma onda e outra.

Um dia especial: Qualquer dia em que alguém escute algo que não estava dizendo.

Conexão Literatura: Há alguma pergunta que o senhor esperava ouvir — e que não foi feita?

Merton Somerset: Talvez. Mas o mais provável é que essa pergunta exista apenas no silêncio de quem lê.

Gosto de pensar que há perguntas que não precisam ser ditas, mas apenas habitadas.

Se alguém, ao terminar esta entrevista, sentir que ficou algo por perguntar, que essa pergunta permaneça. Talvez ela seja mais importante do que qualquer resposta que eu pudesse dar.

Conexão Literatura: Deseja encerrar com mais algum comentário?

Merton Somerset: Sim. Apenas isso: escrevo porque ainda há coisas que não sei.

O livro que o leitor tem agora à disposição não é uma resposta. Nem uma tese. É um espelho velado. Um convite a escutar, mesmo — e sobretudo — aquilo que não compreendemos.

Se cada leitor, ao terminar a leitura, sentir que alguma pergunta permaneceu viva, então algo foi dito. Mesmo que não se saiba o quê.

Porque às vezes, o que mais importa não é o que está escrito. É o que ecoa depois.

M.S.

Tarawa do Sul, Kiribati,

Abril de 2025.

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